BOLETIM SEMANAL #02

Olá, pessoas.
Luciano Bitencourt aqui, trazendo as impressões que eu e Daniela Germann estamos colhendo em nossas apurações sobre os impactos da desinformação em processos eleitorais.
Antes de a gente tratar das questões que nos provocaram nesta semana e são destaque aqui, quero compartilhar com vocês uma declaração de Manuel Castells em entrevista à revista Veja e que tem muito a ver com o que vamos abordar.
“Eu acredito que estamos em um momento sombrio da história, porque nosso superdesenvolvimento tecnológico está em contradição com nosso subdesenvolvimento moral e político”.
Em nossas apurações aqui na e-Comtextos, percebemos que o debate a respeito do imbróglio promovido pelo bilionário Elon Musk contra as instituições brasileiras, “fulanizado” propositadamente em um embate contra o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, põe muita água no caldeirão fervente das eleições municipais de daqui a seis meses.
Então, vamos às nossas impressões.
Contra cascas de banana, silêncio estratégico
Quem traz as primeiras pistas sobre as intenções do bilionário é Ronaldo Lemos [texto para assinantes], diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) que escreve regularmente na Folha de São Paulo.
Em síntese, ele afirma que as instituições brasileiras deveriam ter adotado o que chamamos de silêncio estratégico no embate com o dono do ex-Twitter. Em bom português, não entrar no bate-boca digital com alguém que é especialista e faz disso uma forma eficaz de amplificar as oportunidades para seus interesses.
Na avaliação de Lemos, Elon Musk conseguiu “demitir” o relator do PL das Fake News, Orlando Silva, e sepultar o texto que há pelo menos quatro anos tramitava na Câmara Federal. Mais: conseguiu que uma nova comissão comece do zero para apresentar uma outra proposta em 40 dias.
O lobby das big tech ganha outro patamar na disputa com o judiciário sobre suas responsabilidades.
Existem outras conquistas de Musk menos aparentes, mas também impactantes para processos eleitorais e para a democracia. A Starlink, provedora de internet por satélite de Musk, hoje responde por grande parte das comunicações em 697 municípios da Amazônia Legal, o que equivale a 90% da região. Além de manter contratos com setores das forças armadas e tribunais regionais.
A treta criada no Brasil rendeu publicidade suficiente para a ampliação dos serviços, ainda controlados pela Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações, responsável pela regulação das telecomunicações no país.
Digo ainda, porque em breve a conexão de celulares por satélite não vai necessitar mais de aparelhos especiais e a cobertura de abrangência da Starlink deve operar totalmente em órbita baixa, sem necessidade de pontos terrestres ligados à rede de comunicação brasileira. Quer dizer: a Starlink passaria a ganhar independência jurídica e vantagens econômicas.
Dá para imaginar o impacto disso em campanhas eleitorais regionalizadas?
Judiciário em xeque: as armadilhas da regulação
Para as eleições municipais deste ano, a regulação sobre moderação de conteúdo e combate à desinformação está enterrada. Por mais agilidade que o Congresso brasileiro imprima no novo texto (em si mesmo já um grande risco), vai ficar com a justiça eleitoral o papel de coibir abusos e campanhas de desinformação orquestradas.
Um problemão, tendo em vista o que conseguimos avançar até aqui. As investigações conduzidas por Alexandre de Moraes sobre as “milícias digitais” há pouco menos de três anos geraram controvérsias porque foram abertas sem a anuência do Ministério Público, a quem cabe fazer as solicitações de inquérito.
Com o acirramento político e as investidas de setores da extrema direita em favor de um golpe de Estado, muitas decisões judiciais para conter abusos romperam os limites considerados essenciais para um ambiente democrático saudável.
Especialistas entendem que o judiciário precisa se posicionar neste momento porque a liberdade de expressão deve ser orientada pelas normatizações que já existem, inclusive as internacionais. Ao mesmo tempo, mostram-se preocupados com algumas deliberações para as eleições deste ano, especialmente as que penalizam as plataformas.
É que o Tribunal Superior Eleitoral determina, em resolução específica para este pleito, a remoção de conteúdo mesmo sem decisão judicial. Portanto, as plataformas teriam que fazer por conta própria a moderação e evitar a publicação de notícias falsas sem que haja pedido formal. Em tese, isso contraria o que diz a legislação mais atualizada. Censura prévia pode ser uma consequência dessa decisão.
Não por acaso, enquanto o Congresso se movimenta para pôr em pauta outra vez o que fazer para lidar com a “poluição informacional” no âmbito político, o Supremo Tribunal Federal também agiliza a discussão sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet, justamente o que restringe a remoção de conteúdo e a responsabilização das plataformas sem ordem judicial.
Imbróglios como o criado por Elon Musk fomentam o acirramento das discussões. Nada bom para a garantia de direitos. Um estudo sobre a legislação de combate às fake news em 32 países mostra que esses movimentos na direção de leis mais focadas em restrições podem estar surtindo efeito contrário [texto em inglês] porque acabam mesmo cerceando liberdades, mais do que coibindo abusos.
Populismo digital como meio de fazer política
Alexandre de Moraes foi aprovado no fim da semana que passou como professor titular na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo com a tese “Direito Eleitoral e o novo populismo digital extremista: liberdade de escolha do eleitor e a promoção da democracia”.
Entre as conclusões abordadas durante a defesa, o ministro do Supremo Tribunal Federal enfatiza que desinformação, notícias falsas e discursos de ódio fazem parte de uma estratégia coordenada contra a democracia. Também defende a responsabilização das plataformas.
Só que a questão é mais complexa.
Segundo a cientista política Paula Diehl, o populismo precisa ser pensado como uma forma de fazer política que afeta a sociedade sem um conjunto coerente de ações por parte do ator que o representa. Quer dizer: os atores não agem seguindo uma única cartilha. Ela destaca que a comunicação populista e a mídia tradicional operam de modos similares na busca por audiência.
Segundo Paula, em entrevista recente, a simplificação e a dramatização das mensagens, a amplificação dos conflitos e a produção de escândalos são algumas formas usadas pela comunicação populista e pela mídia para chamar a atenção dos públicos.
O ministro do STF, agora professor da USP, tem reforçado sua tese na prática. E, considerando as concepções da cientista política, pode-se dizer que Moraes personifica a base ideológca da comunicação populista da direita mais radical, cuja intenção é dar ênfase ao fato de que o “povo foi traído”, discurso que sustenta as teses do populismo.
A mídia, em geral, não corrobora essas afirmações, mas acaba dando destaque demais para atores do populismo de direita. Sem olhar criticamente para o que dizem esses atores, reforça a mensagem deles pela repetição.
Se pode verificar isso bem claramente quando o nome de Moraes passa a ser alvo de manchetes em casos como os promovidos por Musk, sem que o ministro do STF tenha sido protagonista das acusações feitas pelo jornalista estadunidense Michael Shellenberger, estopim de toda a encrenca.
Moraes não aparece em um e-mail sequer divulgado no “Twitter Files – Brazil” como responsável pela cobrança de informações ou pedido de quebra de sigilo das contas de usuários. Bastou Musk citá-lo diretamente para que a mídia desse a amplitude que a estratégia dos populistas digitais pedia.
No final de semana, os “jornalões” Folha de São Paulo e Estado de São Paulo assumiram em editorial posicionamento contra o que chamam de censura prévia promovida por Alexandre de Moraes ao longo dos últimos anos, mesmo entendendo que houve momentos em que as medidas eram necessárias. O Globo, por sua vez, pede urgência na regulamentação contra as fake news.
Elon Musk é um ator político. Como diz Ronaldo Lemos, as instituições democráticas brasileiras precisam compreender que há um novo cenário de manipulações, onde se deve aprender o jogo antes de jogar.
Sob um aparente escândalo, amplificado, simplificado e dramatizado, determinados grupos políticos saem na frente na pré-campanha eleitoral, tendo como “guru” alguém com poder de comunicação (canais e infraestrutura) suficiente para colocar cascas de banana nas esquinas que achar mais estratégicas.
Não fará diferença, aliás, a verba de publicidade para o ex-Twitter cancelada pelo Governo Federal em face do discurso de Musk. Mais uma medida que poderia ser tomada em silêncio estratégico para não reverberar como retaliação no bate-boca que tomou conta da agenda de debates no Brasil.
No radar
- Segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji, cerca de 10% dos processos que tratam de liberdade de expressão e tramitam no Brasil configuram assédio judicial contra jornalistas. Os casos são reconhecidos pela área jurídica da entidade como sistemáticos. Dois terços deles ocorreram depois da posse do ex-presidente Jair Bolsonaro.
- Uma nova resolução estabelecendo prioridade absoluta em garantir direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital foi aprovada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conanda. Liberdade de expressão, direito à privacidade, proteção de dados e responsabilidade das empresas que oferecem tecnologia e conexão digital estão no texto. O conselho propõe também uma política nacional para consolidar as ações apontadas como necessárias.
- Em todo o mundo, os verificadores de fato vêm enfrentando assédio, ameaças e têm sofrido com cortes orçamentários de organizações que prestam esse tipo de serviço, incluindo as plataformas de mídias sociais. É um dado preocupante porque, neste ano, dezenas de países passam por processos eleitorais e estão sujeitos a campanhas de desinformação política.