BOLETIM SEMANAL #03
Olá, pessoas.
Luciano Bitencourt aqui, com mais um boletim sobre os impactos da desinformação em processos eleitorais.
Confesso que nos sentimos tentados, eu e Daniela Germann, a tratar de novo sobre os desdobramentos do caso Elon Musk contra o Estado brasileiro. Especialmente porque faz parte da estratégia bem articulada pela extrema direita no ecossistema de desinformação.
O bilionário agora está “interessado” em comprar a Rede Globo. Sempre tem quem acredite em ironias, sátiras, paródias e não compreenda as intenções por trás de uma simples postagem como a de Musk em resposta a uma “provocação”.
Por isso, precisamos sair da bolha. Vamos tirar o foco do imbróglio em si mesmo e tentar refletir a respeito de seus impactos.
Oferta de opiniões, não de notícia
Quero começar por uma frase proferida pelo vice-presidente de notícias do Google, Richard Gingras, em um evento internacional de Jornalismo.
“Preferimos que nossos preconceitos sejam confirmados. A afirmação é mais satisfatória do que a informação”.
Colocada em contexto, a declaração vem acompanhada de algumas das razões pelas quais a mídia, segundo ele, tem aumentado a oferta de opiniões ao invés de conteúdo noticioso.
De bate-pronto, a gente logo associa o termo “opinião” com crenças particulares e pontos de vista pouco afetados por evidências e fatos. Sinal da polarização que vivenciamos. A provocação de Gingras, entretanto, vai além.
Um estudo publicado na Revista Nature em dezembro do ano passado mostra que os usuários podem cair no que se chama de espiral de desinformação [em inglês]. Como não há indicações de integridade das informações contidas nas listas de conteúdo relacionadas às pesquisas, os usuários estão sujeitos ao acesso a veículos descompromissados com a veracidade do que informam ou alinhados ideologicamente à crença de certos grupos políticos.
Outro aspecto importante, também enfatizado por Gingras, é que o público em geral não faz distinção entre opinião e informação baseada em fatos. Sendo assim, mesmo que as fontes de pesquisa cumpram critérios de credibilidade, as nuances do conteúdo acessado podem reforçar crenças por expressar um ponto de vista específico e não uma versão da realidade baseada em dados e fontes diversificadas.
Por exemplo: o relatório divulgado por um congressista dos Estados Unidos contendo decisões do Supremo Tribunal Federal pintadas como arbitrárias repercute de acordo com opiniões e posicionamentos deslocados do compromisso com os fatos.
Boa parte da “cobertura” revela uma dose significativa de proselitismo político, estrategicamente desenhado para confundir os milhões de eleitores que vão às urnas neste ano no Brasil e nos Estados Unidos.
Multiplicação de argumentos falsos
Acontece que estamos em outro patamar no que diz respeito a campanhas de desinformação. Veículos supostamente noticiosos vêm se multiplicando na internet e têm servido de sustentação para dar um caráter de oficialidade a argumentos falsos, enganosos ou descontextualizados. A Inteligência Artificial Generativa acelerou ainda mais essa tendência.
Jack Brewster, jornalista estadunidense, escreveu no The Wall Street Journal como produziu um site de notícias [em inglês] no estado de Ohio com apenas 105 dólares. Contratou um desenvolvedor e usou o ChatGPT para produzir todo o conteúdo. Mais: programou o algoritmo para ser tendencioso politicamente.
Como os recursos são acessíveis, baratos e eficazes, é mais difícil coibir ilegalidades.
Não por acaso, o NewsGuard, organismo internacional que monitora processos de desinformação, já identificou mais de 800 sites de notícia criados e mantidos com tecnologia generativa [em inglês] em pouco menos de um ano. Neles há pouquíssima ou nenhuma supervisão humana.
A disseminação de desinformação está se tornando mais sofisticada [em inglês]. Mas, os principais riscos ainda estão ligados ao compromisso das plataformas em moderar a disseminação de conteúdos nocivos à democracia.
Dave Vorhaus, atual diretor de integridade eleitoral da Google, justifica a dificuldade de superar o dilema entre sustentar o modelo de negócios das plataformas baseado no engajamento de usuários e não permitir o aumento da poluição informacional, especialmente no âmbito político.
“Se um site tiver várias páginas que desrespeitam a nossa política, agimos. Mas não fazemos isso se uma página num site com milhares de conteúdos e artigos violar uma das nossas políticas”.
É importante compreender que as plataformas agem de maneiras distintas sobre o que consideram desinformação e têm regras próprias para tirar de circulação conteúdos considerados impróprios [texto para assinantes]. Nem todas, por exemplo, afirmam que vão descumprir decisões judiciais [texto para assinantes].
Riscos para o megaciclo eleitoral
Como sugere o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD Brasil, a liberdade de expressão é fundamental para a integridade eleitoral. Isso porque garante acesso a informações confiáveis, diversificadas, verificadas e relevantes, para que os eleitores tomem decisões embasadas, participem da política e manifestem-se publicamente. Ir às urnas é só um momento específico do ciclo eleitoral, contínuo e ininterrupto em democracias.
Os fatos mostram que toda a repercussão sobre as declarações do bilionário dono do ex-Twitter, Elon Musk, a respeito do sistema judiciário brasileiro têm muito mais ramificações do que exclusivamente chamar a atenção para supostas arbitrariedades.
Ativistas digitais – alguns inseridos nos inquéritos em andamento no STF – têm feito lobby em determinadas instâncias de poder no Brasil e no exterior, com a intenção de legitimar afirmações sem evidência e aproveitar a infraestrutura de comunicação globalizada, agora barata e fácil de conectar ao ecossistema, para criar narrativas que exploram crenças e vieses [texto para assinantes].
A Coalizão Global para Justiça Tecnológica, GCTJ, alerta [texto em inglês] para o fato de que as empresas de tecnologia estão reduzindo investimentos em segurança e em políticas de acesso aos dados, justamente no ano do chamado megaciclo eleitoral. Ao mesmo tempo, essas empresas continuam lucrando com conteúdos que incitam todo o tipo de violência e desinformação.
E os lucros não são apenas financeiros.
No radar
- De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, mais de 80 mil jovens entre 15 a 17 anos emitiram o primeiro título de eleitor até agora [texto para assinantes], só neste ano. O voto para pessoas nesta faixa etária é facultativo. Por isso os dados são considerados expressivos e impactam nas eleições municipais. O Brasil tem cerca de 1,4 milhão de jovens com menos de 18 anos aptos a votar.
- No relatório do Monitoramento de Ataques Gerais e Violência de Gênero elaborado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, Abraji, estão registrados 330 ataques a jornalistas em 2023, 41% a menos que no ano anterior. Discursos estigmatizantes continuam predominando. Mesmo com a redução, não existem evidências ainda de que o cenário esteja mudando em função do ambiente político menos agressivo.
- Já na Argentina, a eleição de Javier Milei elevou o número de casos de ataques à imprensa. O Monitoramento da Abraji mostra que, entre dezembro do ano passado e março deste ano, quatro de cada 10 ataques a jornalistas e veículos de comunicação foram protagonizados pelo executivo, parte significativa partindo do próprio presidente argentino.