Polarização é útil para modelar negócios no ecossistema de desinformação [#04]

Imagem criada com o DALL-E 3

Olá, pessoas.

Aqui é Luciano Bitencourt, com mais um boletim semanal da e-Comtextos, inserido agora no Observatório Desordem Informacional em Pauta, disponível já, já.

A partir desta edição, transformamos nossas apurações de todas as segundas-feiras em newsletter, para facilitar notificações de atualização.

Eu e Daniela Germann fomos inspirados por uma declaração do jornalista Martin Baron, ex-diretor do Washington Post e editor-chefe do Boston Globe nos tempos do Spotlight [lembram do filme?] quando sua equipe de jornalismo investigativo denunciou o acobertamento de abuso sexual na Igreja Católica.

Em entrevista ao jornal Espanhol ABC, Baron argumenta:

“Vários novos meios de comunicação divulgam informações falsas porque a polarização é um modelo de negócio. Uma forma de atingir o público, de envolver mais leitores, é provocar fúria, raiva e criar tensões entre o público. Existe uma oportunidade de espalhar desinformação ou teorias da conspiração.”

Destaco este trecho porque explicita uma das principais motivações por trás da disseminação deliberada de conteúdo falso, enganoso ou descontextualizado nas mídias digitais.

Façamos algumas conexões com assuntos da semana passada para pensar sobre os impactos da desinformação em processos eleitorais.

Google restringe conteúdo eleitoral

Perfis de 71 pré-candidatos analisados pelo Ipespe Analítica mostram que uma em cada 20 postagens, em média, referem-se ao presidente Lula ou ao ex-presidente Bolsonaro. Um indicativo, segundo analistas ouvidos pela CNN, de que a polarização política deve ter pouco impacto nas eleições municipais.

Até pode ser. Mas, não podemos esquecer que em geral não são os perfis oficiais dos candidatos que pautam os temas no ecossistema de desinformação. A polarização como modelo de negócio influencia de muitas maneiras o debate público.

Com as regras mais rígidas do Tribunal Superior Eleitoral, o Google, por exemplo, anunciou recentemente que não vai permitir o impulsionamento de conteúdo político em suas plataformas. A empresa considerou os riscos de punição caso as empresas responsáveis pela moderação nas redes não obedeçam à resolução do TSE que normatiza as campanhas deste ano.

Entre as regras da justiça eleitoral estão a necessidade de as plataformas manterem o armazenamento de todos os anúncios, de disponibilizar um sistema de monitoramento detalhado sobre o conteúdo e de um controle mais rígido a respeito de propaganda negativa.

O Google deve atualizar suas políticas ainda nesta semana sob a justificativa de preservar a integridade das eleições e o diálogo com as autoridades. Mas, se considerarmos que o faturamento da empresa com o impulsionamento de anúncios no último pleito municipal em 2020 foi de cerca de R$ 36 milhões, dá para entender a decisão.

Para uma empresa que faturou no ano passado U$ 74 bilhões, o equivalente a cerca de R$ 370 bilhões numa conversão bem rasa, valeria a pena o investimento em infraestrutura e o alto risco de punição em nome de uns trocados?

A pressão do judiciário brasileiro sobre as gigantes da tecnologia não é sem razão. Polarizar tem sido uma moeda corrente bastante útil para os negócios das big tech.

Primeiro é preciso considerar um declínio evidente de confiança nas instituições em todo o mundo. Pode-se atribuir isso ao avanço da extrema-direita e de ideologias mais conservadoras, algumas fundamentalistas até, em países tradicionalmente democráticos.

Mas a resposta não é tão simples.

A falta de acesso à Justiça, o descrédito nos processos eleitorais, o fato de as pessoas serem propensas a apoiar lideranças não democráticas mesmo em países com instituições políticas fortes, a insatisfação com os governos e o pessimismo em relação à melhora das condições de vida ao longo do tempo ajudam a compreender de forma mais abrangente o cenário.

Dados que mostram isso estão em levantamento recente sobre a avaliação da Democracia em 19 países [texto em inglês], incluindo o Brasil. Fatores negativos a respeito das instituições e dos poderes de Estado se sobressaem em maior ou menor medida no estudo. E, ao que parece, as análises especializadas estão em desacordo com o que as pessoas pensam de forma genérica.

Não dá para desconsiderar que as big tech têm parte considerável da responsabilidade. Haaris Mateen, economista-chefe da pesquisa “Pagando por notícias: O que o Google deve aos publishers dos EUA” faz uma pergunta crucial:

“Imagine o Google sem notícias. E, quando eu digo notícias, eu digo: sem atualidade, política, esportes, sem nada disso. O que o Google seria? Seria mais próximo da busca da Amazon”.

Segundo os pesquisadores, a dívida do Google com o Jornalismo é na casa dos bilhões de dólares por ano em países como Brasil e Estados Unidos porque conteúdos noticiosos correspondem a 35% dos resultados de busca na internet e deveriam monetizar seus produtores.

A empresa, por outro lado, argumenta que investe em projetos jornalísticos no mundo inteiro e diz não haver critérios aceitáveis em estudos que a acusam de lucrar com o impulsionamento de desinformação.

Faz parte do modelo de negócio desconsiderar fatos em detrimento de qualquer outra coisa que atraia mais cliques. E as mentiras se espalham seis vezes mais rápido [texto em espanhol].

Na semana que passou, o Marco Civil da Internet, lei que regulamenta o uso da internet no Brasil, completou 10 anos. Considerado avançado na época em que foi sancionado, o texto é motivo de controvérsias atualmente.

Os riscos associados ao uso das redes digitais são muito maiores agora, mas o debate sobre as formas adequadas para evitá-los também é influenciado pela polarização.

Um artigo em específico tem ganhado destaque demais. O Artigo 19 do Marco Civil da Internet reforça que as plataformas só podem ser penalizadas pela disseminação de conteúdo nocivo se não cumprir determinações judiciais. E o próprio judiciário quer rever isso.

A questão que se levanta é a ineficiência de se fazer alterações pontuais sem, efetivamente, ir à raiz do problema. E, nesse aspecto, o Marco Civil da Internet é um balizador considerado importante demais para ser negligenciado.

Entre soluções mais adequadas aos dias de hoje e o pânico moral existem limites cada vez mais tênues. Uma análise na legislação específica de 71 países evidencia uma preferência pela adoção de medidas punitivas como abordagem no combate à desinformação.

A mídia informativa também tem parcela de culpa. Um estudo em países com desempenho democrático acima da média sugere que discursos políticos negativos são preferidos pela mídia e promovem um efeito bumerangue [texto em inglês] no descrédito do público.

Um exemplo: parlamentares belgas mais negativos e incivilizados, no sentido de usar discursos jocosos sobre adversários e acontecimentos políticos, têm mais chances de aparecer no noticiário. O destaque à incivilidade aqui, que poderíamos chamar de “lacração” em linguagem mais popular, é que importa.

Discursos negativos, segundo o estudo, não são necessariamente ruins quando se limitam a divergências políticas, sem ofensas pessoais. Há uma tendência, entretanto, de se dar mais atenção à incivilidade, o que deve servir de alerta para jornalistas e produtores de informação.

As tensões sociais que levam à polarização são lucrativas para o ecossistema de desinformação. Quando Elon Musk compra “briga” com autoridades de Estado, o Google limita o acesso a informações baseadas em fatos e a imprensa valoriza ofensas e ataques jocosos de políticos extremistas, por exemplo, os ganhos em economia monetária e de atenção potencializam o modelo de negócio monopolizado pelas big tech.

E o modelo privilegia a incivilidade.

  • Levantamento da Zoho Corporation, uma organização especializada em gerenciamento de TI empresarial, mostra que 54% das empresas ouvidas no Brasil registraram aumento na incidência de ameaças cibernéticas no ano passado. A falta de investimentos em segurança por parte das empresas e o uso de Inteligência Artificial Generativa pelos criminosos são fatores que contribuem para esse aumento. Na semana passada o Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) foi invadido, com prejuízos ainda não calculados pela União. Um outro levantamento da Apura, empresa de inteligência de segurança na área, traz o avanço e a sofisticação desses crimes com a IAGen. São alertas para os riscos que o ciclo eleitoral deve enfrentar.
  • A Democracy Reporting International, organização sem fins lucrativos com sede em Berlim, descobriu que os quatro chatbots de Inteligência Artificial mais populares não foram capazes de oferecer respostas confiáveis sobre os processos eleitorais na Europa. O conjunto de perguntas feitas aos programas tem similaridade com as que fazemos em sistemas de busca e, em grande parte, faziam referência a dúvidas muito práticas sobre procedimentos e regulamentações. Os resultados surpreendem e mostram que as empresas responsáveis pelos algoritmos não estão cumprindo as exigências legais determinadas pela União Europeia. No Brasil, a Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil (CTIA) do Senado apresentou texto preliminar sobre uma regulação que leva em conta as experiências na Europa e nos Estados Unidos.

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