Catástrofe, eleições e as nuances entre o verdadeiro e o falso [#06]

Governos Federal e do Rio Grande do Sul buscam o controle das ‘fake news’ (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Olá, pessoas.

Tem sido mais desafiador do que imaginamos, eu e Daniela Germann, tratar de desinformação ultimamente. A tragédia no Rio Grande do Sul aprofunda o dilema a respeito da integridade das informações que nos chegam e escancara as vulnerabilidades a que estamos sujeitos, todos que trabalhamos com fatos.

A propósito, aqui é Luciano Bitencourt, excepcionalmente numa terça-feira, com mais um boletim Desinformação em Pauta.

Antes de começarmos, cabe realçar algumas das entidades confiáveis para as quais se pode enviar ajuda ao estado atingido pelas chuvas.

O Meio e o Nexo listam boas opções. Já o Núcleo traz um “pacotão de links” em que se pode procurar onde ajudar, selecionando por estado e por categoria. Além disso, tem como sugerir endereços que não constam do compilado preenchendo o formulário neste link. As sugestões, claro, serão verificadas antes de entrar no “pacotão”.

Falando em verificação de fatos…

“Não tá fácil saber o que é verdadeiro e o que é falso em meio ao horror que assolou o querido RS”.

Esta afirmação não é nossa. A recortamos de uma postagem de Cristina Tardáguila no ex-Twitter, co-fundadora da Agência Lupa de checagem, porque traduz o embate entre o proselitismo típico de períodos pré-eleitorais e o que de fato tem a ver com a catástrofe no Rio Grande do Sul.

Entre o verdadeiro e o falso há muitas nuances a serem consideradas. Especialmente em ano eleitoral.

“Controle” sobre as fake news

Polícia Federal e Polícia Civil do Rio Grande do Sul abriram inquéritos para apurar a divulgação de notícias falsas a respeito das enchentes que afetaram 90% dos municípios gaúchos. Ao longo das quase duas semanas de sofrimento para a população, muito se disse nas redes sociais sobre a ausência do Estado nos momentos mais críticos e a interferência do poder público nas ações de voluntários.

De fato, não fosse a solidariedade e a organização espontânea da sociedade civil, as consequências seriam muito mais graves. Desde o início, voluntários se mobilizaram por todo o país para ajudar como puderam. Do resgate e acolhimento às vítimas nos municípios atingidos, ao auxílio na conferência de listas improvisadas com nomes de pessoas procuradas por amigos, parentes e familiares.

As campanhas de desinformação ganharam força quando boa parte do conteúdo produzido nas mídias sociais foi tirada de contexto para justificar críticas à atuação das instituições, especialmente as mantidas pelo poder público. Perfis falsos com identidade visual de órgãos públicos pedindo doações, divulgação de dados sem correspondência com os registros oficiais, ataques políticos, o repertório foi bastante diversificado.

Por causa desse quadro, os governos Federal e Estadual decidiram controlar as informações e se aproximar das empresas detentoras das plataformas para combater as fake news. Nem tudo, entretanto, cabe na régua estabelecida pelos dados oficiais ou pelo crivo das assessorias de comunicação responsáveis pela checagem das informações.

A situação ainda é crítica em boa parte dos municípios atingidos, os registros oficiais não são capazes agora de fornecer todas as evidências da dimensão e do impacto da tragédia. Em cenários assim, relatos sobre corpos boiando, amarrados em postes ou submersos nas casas ainda encobertas, por exemplo, são testemunhos que ajudam a entender o drama de quem vive de perto a catástrofe.

Os relatos em si mesmos, muitas vezes, assumem tons de desabafo diante do cansaço e expõem o temor quanto ao que os números provisórios, divulgados com base no que se pode aferir até o momento, escondem. A desinformação em muitos desses relatos está no uso em contextos nos quais não foram produzidos. Nem todos são falsos ou têm a intenção deliberada de mentir.

Informações de qualidade dependem do compromisso com a verificação dos relatos e testemunhos, dos dados divulgados pelas autoridades e da observação dos locais atingidos. É um trabalho que demanda tempo, recursos para deslocamento a lugares nem sempre acessíveis e método para certificar a integridade das informações. Quando não têm essas condições, bons jornalistas são honestos o suficiente para revelar as limitações do que estão contando.

No Rio Grande do Sul, os veículos informativos locais enfrentam um desafio extra. Não é simples produzir conteúdo jornalístico em meio às adversidades vividas também pelos profissionais de imprensa. Já a grande mídia, incluindo os veículos tradicionais da região, perdeu o timing da cobertura. A imprensa, de um modo geral, tem dado respostas insuficientes aos olhos de quem vive de perto os reflexos das enchentes. Tem sido, inclusive, hostilizada.

Parte das críticas ao Jornalismo é reflexo da polarização política, acentuada em ano eleitoral. Mas a crise climática no Rio Grande do Sul também aflorou uma certa acomodação na cobertura da tragédia, centrada em dados oficiais e em uma postura pouco crítica ao descaso dos governos com políticas públicas ambientais.

Alguns veículos foram capazes de buscar respostas para um problema que não se resume à ideia de que a catástrofe vivida pela população gaúcha é natural. Conseguiram também levantar ações equivocadas dos agentes públicos, denunciar a má gestão dos recursos, mostrar decisões que acentuaram o impacto desses eventos climáticos na região.

O problema é também político. Para os gestores públicos responsáveis pelas decisões a serem tomadas na busca por soluções, muitos deles em pré-campanha eleitoral, transformar riscos em oportunidades passa pela propaganda do que estão fazendo, não pela apuração do que deixaram de fazer.

O uso generalizado do termo fake news é também uma forma de reduzir as dimensões e os impactos de um problema muito maior e mais sério. Ao centralizar o monitoramento de mentiras e falsidades sobre as enchentes, os governos adotam uma estratégia sugerida por especialistas para evitar o “vácuo institucional” que alimenta campanhas de desinformação, particularmente no âmbito político.

Em oposição às reações governamentais contra o que o discurso oficial chama de fake news, o partido Novo, por exemplo, acionou a Procuradoria Geral da União para apurar o que considera censura e abuso de autoridade. A queixa-crime se baseia no argumento de que o Governo Federal, neste caso, quer punir os críticos à sua atuação e limitar a liberdade de expressão.

Na mesma linha, 25 deputados federais alinhados ao bolsonarismo apresentaram um Projeto de Lei que criminaliza a criação de dificuldades para a entrega de donativos e a prestação de socorro e salvamento em situações de perigo. Como justificativa, os parlamentares utilizam denúncias falsas ou descontextualizadas de que os agentes públicos estão burocratizando e impedindo a atuação dos voluntários.

Em Santa Catarina, o governador Jorginho Mello, alinhado ao mesmo grupo político, também chegou a usar um caso isolado como se fosse resultado de uma orientação geral dada aos agentes públicos pelo Governo Federal. As alegações foram desmentidas, mas ainda são citadas em palanques políticos e requentadas em documentos oficiais de parlamentares.

Fabiano Feltrin, prefeito de Farroupilha, viralizou nas redes sociais ao publicar uma conversa com o Secretário de Comunicação do Governo Federal, Paulo Pimenta, cobrando recursos emergenciais para o município. Farroupilha, no entanto, não está entre os mais atingidos nem é reconhecido pelo governo estadual como em estado de calamidade pública ou emergência.

Os exemplos descrevem bem o tipo de articulação por trás de campanhas de desinformação estrategicamente elaboradas para alimentar a propaganda eleitoral extra-oficialmente em andamento. Nem sempre desmentir, tirar conteúdo de circulação e punir supostos infratores é suficiente.

Campanhas de desinformação não se resumem às fake news disseminadas em mídias sociais e aplicativos de mensagem. São orquestradas, usam depoimentos genuínos cuja intenção não é necessariamente a que fazem parecer, deturpam e descontextualizam dados e registros para confundir. Em momentos de vulnerabilidade como agora no Rio Grande do Sul, instrumentalizam e canalizam os efeitos da tragédia para polarizar ainda mais o cenário político pré-eleitoral.

  • O Senado Federal está programando a votação do novo Código Eleitoral neste mês de maio. O projeto, já aprovado pela Câmara dos Deputados, visa unificar sete leis eleitorais em uma única legislação. O relator do texto, senador Marcelo Castro, propõe diversas alterações, incluindo a manutenção da cota de 30% de candidatas mulheres por partido e o aumento de recursos destinados às candidaturas femininas. Outras medidas abordadas são a definição de regras para federações partidárias, a padronização do período de inelegibilidade para candidatos condenados pela Lei da Ficha Limpa e a imposição de quatro anos de afastamento para promotores, juízes, militares e policiais que desejam se candidatar. Além disso, o relator pode incorporar ao novo Código Eleitoral o conteúdo da minirreforma eleitoral aprovada na Câmara em 2023.
  • O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu, por unanimidade, que as eleições de 2024 contarão com a presença de um juiz de garantias eleitoral [necessário registro gratuito]. A medida, aprovada por meio de uma resolução, determina que os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) terão 60 dias para implementar o novo modelo, já nas eleições municipais. O juiz de garantias eleitoral será responsável por decidir sobre diligências durante a fase de investigação de crimes eleitorais, enquanto outro juiz ficará encarregado do julgamento do réu.
  • O TSE elegeu Cármen Lúcia como sua nova presidente. A ministra planeja continuar combatendo a desinformação nas eleições municipais[texto para assinantes] e focar na fiscalização do uso de inteligência artificial. A mudança na presidência também traz uma nova correlação de forças, com a chegada do ministro André Mendonça, indicado por Jair Bolsonaro, o que pode afetar o placar de julgamentos. Cármen Lúcia tem o projeto de avançar na edição de normas para combater a desinformação, incluindo restrições ao uso de deep fakes e regras de transparência para o impulsionamento de propagandas políticas.

Deixe um comentário