Os fatos estão em desvantagem na luta contra a desinformação [#08]

Imagem criada por Inteligência Artificial – DALL-E 3

Olá, pessoas.

Luciano Bitencourt aqui às voltas com um levantamento intrigante.

Eu e Daniela Germann nos deparamos com a complexidade do processo eleitoral da Índia e os desafios para conter a desinformação por lá.

Imaginem um país com um número de eleitores quase cinco vezes maior que a população do Brasil, com 22 línguas oficiais e mais de 120 idiomas regionais. A disputa eleitoral por lá dura 44 dias (de 19 de abril a 1° de junho) e a campanha política está repleta de propaganda produzida artificialmente.

Pois é nesse cenário que o Jornalismo tem buscado alternativas para conter o avanço da desinformação [texto em inglês]. Nessa cruzada, os fatos estão em desvantagem. Karen Rabelo, da Bloom Live, uma organização de checagem localizada em Mumbai, faz o alerta:

“Você não pode mais confiar apenas em suas habilidades humanas para verificar os fatos” [tradução livre].

Isso porque as estratégias usadas para enganar envolvem recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados e os jornalistas estão procurando se associar a especialistas em “análise forense” para dar conta de desvendar sinais de manipulação em vídeos e áudios gerados por Inteligência Artificial.

Até políticos indianos falecidos têm sido usados para persuadir eleitores. As peças de propaganda são produzidas em questão de horas, em diferentes línguas e formas de personalização.

É muito importante tratar disso agora porque estamos em um grande balão de ensaios. O mundo passa por um ciclo eleitoral sem precedentes, onde mais da metade da população vai às urnas [texto em inglês].

O pleito eleitoral na Índia talvez seja o mais complexo e de onde se pode tirar muitas lições úteis no futuro.

Tensões catalisadoras

Dilemas vividos no processo eleitoral indiano não estão tão distantes quanto se imagina. Narrativas falsas e manipulação de informações estão no escopo do que pesquisadores brasileiros consideram fatores de risco para as eleições municipais deste ano no país. O projeto Mídia e Democracia, da Fundação Getúlio Vargas em parceria com a União Europeia, mostra isso em relatório [em inglês].

De acordo com o estudo, para que campanhas de desinformação sejam coibidas e seus efeitos mitigados, é imprescindível a supervisão humana de conteúdos produzidos por Inteligência Artificial. Mas já se avalia que a tecnologia tenha de compor o processo de moderação como uma etapa inicial de verificação quanto à nocividade e à legalidade do que se propaga como informação.

As urnas eletrônicas, por exemplo, têm sido objeto de informações falsas e imprecisas para desacreditar o resultado das votações no Brasil. Se sabe, contudo, que esta é uma estratégia de escala global para pôr em dúvida as instituições responsáveis pela integridade de eleições e mobilizar as pessoas em torno de pautas extremistas.

Neste ano, em que disputa mais uma corrida à presidência, Donald Trump intensificou os ataques à integridade eleitoral nos Estados Unidos, com alegações de fraude e uma retórica bastante aperfeiçoada a respeito de estar sendo “perseguido” pelos adversários políticos que “controlam o sistema”.

Tanto aqui quanto nos Estados Unidos, as táticas de convencimento sobre a falta de lisura nos processos eleitorais e no sistema político culminaram com a invasão e a depredação do patrimônio público que simboliza os poderes democráticos.

Conflitos sociopolíticos, aliás, são catalisadores de desinformação. Na América Latina, organizações não governamentais têm estudado o ecossistema de informações, sobretudo em lugares que recebem pouca atenção da grande mídia e onde não há produção jornalística local.

As conclusões desses levantamentos apresentam características próprias para cada região. Mas um ponto em comum se destaca: a disseminação de conteúdo desinformativo aumenta sempre que as tensões políticas e os conflitos sociais também crescem. E os resultados desses conflitos, em geral, afetam a liberdade de expressão.

Entre os riscos apontados por especialistas, a influência dos algoritmos no debate político transformado em “praça pública virtual” tem exigido do judiciário, destacadamente o brasileiro, medidas que o colocam no limite entre a defesa de direitos essenciais para a democracia e as restrições necessárias para conter abusos e ilegalidades.

Em eventos internacionais promovidos pelo Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral na semana passada, juristas, gestores públicos e pesquisadores procuraram oferecer um panorama dos riscos que a desinformação representa e alternativas para conter seus impactos.

A liberdade de expressão e a independência judicial são dois pontos intimamente ligados no cenário eleitoral, uma vez que ainda não existem leis e regulamentações apropriadas para amparar decisões jurídicas sobre infrações bastante específicas no contexto digital. Mas a falta de delimitações claras para descrever o que efetivamente configura crime é a questão.

Resoluções do TSE para o processo eleitoral deste ano, por exemplo, procuraram estabelecer critérios para o uso de tecnologias avançadas em propagandas políticas e, de forma mais acentuada, para a propagação de conteúdo com potencial de promover desinformação. As críticas pesam contra a falta de definições que orientem a magistratura na aplicação das regras.

Em termos gerais, se reconhece os avanços da justiça eleitoral no uso de estratégias temporárias em momentos nos quais os riscos para a democracia se acentuam. É o caso de períodos eleitorais mais próximos da votação. Contudo, a falta de uma legislação mais atualizada acentua as vulnerabilidades tanto para o exercício da livre expressão quanto para o cerceamento de discursos violentos, de desinformação e de anúncios políticos ilegais.

No embate com as plataformas de mídias digitais um argumento em especial é motivo de discussões: sem a delimitação de referências sobre o que se considera desinformação e sem parâmetros sobre a responsabilização de quem rompe com esses limites o processo de moderação de conteúdo fica refém de interesses políticos e econômicos.

Para conter as “fake news” sobre a tragédia climática que ainda atinge o Rio Grande do Sul, a Advocacia Geral da União assinou um protocolo com as plataformas para agilizar a retirada de conteúdos enganosos de circulação e reforçar o acesso a dados oficiais e informações credíveis sobre o evento, além de oferecer ações de verificação em seus serviços.

Discussões sobre desinformação nas redes sociais, muitas delas impulsionadas por interesses eleitorais, chegaram a superar o volume de postagens sobre a tragédia no RS. Some-se à pressão, o fato de que o protocolo elaborado pela AGU não estabelece definições sobre o que é desinformação e sugere que os dados oficiais são sempre fontes confiáveis, mesmo quando informam mal ou cometem equívocos.

É preciso reconhecer que os esforços atuais são um paliativo. As plataformas têm anunciado medidas próprias, mais voltadas para fortalecer o modelo de negócio e não para conter propriamente a circulação de conteúdo nocivo e violento. No âmbito político, as iniciativas se restringem a assinar protocolos de cooperação e reformular regras de atuação dos algoritmos com o objetivo de barrar conteúdo político.

Ações assim são consideradas igualmente preocupantes para a integridade da democracia, uma vez que limitam o acesso a posicionamentos políticos divergentes e opiniões contrárias. Nas mídias sociais, são os algoritmos que orientam a exibição de conteúdo aos usuários a partir de experiências quase nunca conscientes no uso das plataformas. Tem-se a falsa sensação de que são os usuários que escolhem o que desejam acessar.

Essa ausência de autonomia associada ao vácuo jurídico quanto às responsabilidades e às delimitações do que seja ilegal sustenta ambientes ideais para campanhas de desinformação. Outros fatores, no entanto, também ajudam. Já há sinais de que consumidores de notícia preferem receber informações de jornalistas alinhados a suas crenças e valores.

Considerando que o consumo de notícias e a credibilidade da imprensa têm caído continuamente ao longo dos anos, essa tendência também oferece riscos ao processo democrático porque pode impulsionar os negócios em Jornalismo na direção das preferências de um público acostumado ao consumo de “informação” em bolhas de interesses bem específicos.

A cisão entre o Jornalismo enquanto bem público e os jornalistas influenciadores de opinião pode ser tão danosa quanto o uso inadvertido e malicioso de Inteligência Artificial para criar conteúdo com base em histórias inventadas, imagens simuladas e áudios recriados a partir de vozes autênticas.

Informação qualificada não se enquadra nos critérios de distribuição de conteúdo usados pelos algoritmos. A inteligência por trás desses modelos de linguagem e de negócio agora cria artificialmente a realidade e impulsiona nossas preferências para o consumo de narrativas que se encaixam no que desejamos.

  • O Projeto de Lei nº 1354/2021 foi aprovado pela Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados. O texto altera o Marco Civil da Internet no Brasil e estabelece a obrigação de as empresas responsáveis pela divulgação de notícias remunerarem os veículos de comunicação pelo conteúdo jornalístico, com base em uma taxa mínima de 50% sobre a receita bruta gerada. Além disso, o projeto veda práticas discriminatórias no rastreamento e distribuição de notícias, e exige que as plataformas digitais garantam o acesso da mídia local e regional. O ex-deputado Denis Bezerra, autor da proposta, afirma ter se inspirado na Lei de Mídia Australiana, com o objetivo de equilibrar as forças entre a mídia tradicional e as mídias digitais. O PL segue agora para análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara.
  • O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por maioria que jornalistas e veículos de imprensa só respondem civilmente em caso de dolo ou culpa grave na apuração de fatos. A Corte entendeu que é necessário um “ônus argumentativo” maior para questionar a liberdade de expressão, considerada uma “liberdade preferencial” para a democracia. Além disso, o STF definiu que caracteriza assédio judicial o ajuizamento de múltiplas ações para constranger jornalistas, permitindo que os processos sejam todos reunidos no foro de domicílio em que o jornalista resida. A decisão visa proteger a atuação dos profissionais da imprensa contra ações judiciais abusivas, prática que tem se tornado bastante comum.

Lembrando, para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.

Até semana que vem.

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