BOLETIM SEMANAL #09
Olá, pessoas.
Luciano Bitencourt aqui em mais um boletim Desinformação em Pauta.
Eu e Daniela Germann temos procurado reunir na e-Comtextos materiais relevantes e pontos de vista que nos dão a dimensão da complexidade do debate que precisa ser feito sobre desinformação, fake news e formas de conter seus efeitos nas eleições que batem à porta.
Nos deparamos, na semana passada, com as repercussões sobre a decisão do Congresso Nacional de manter o veto do ex-presidente Jair Bolsonaro ao dispositivo da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, que definia como crime a “comunicação enganosa em massa” de “fatos sabidamente inverídicos” que pudessem comprometer as eleições.
O Supremo Tribunal Federal, dias antes, havia fixado jurisprudência a respeito do assédio judicial a jornalistas e definido que a responsabilização civil de profissionais e órgãos de imprensa só se configura quando houver a “evidente negligência na apuração dos fatos”.
Podem parecer desconectadas as duas decisões, mas seus efeitos estão no centro de uma disputa política que reverbera no processo eleitoral brasileiro cuja campanha só começa oficialmente em meados de agosto, mas já está a todo vapor.
Metade da população mundial tem sofrido com restrições à liberdade de expressão. Quin McKew, diretor executivo da Artigo 19, uma das organizações internacionais que mensuram os riscos ao acesso à informação e à livre manifestação, traz um ponto crucial no dilema de conter abusos sem cercear liberdades [texto em inglês]:
“As violações acontecem todos os dias e em todo o mundo, à medida que os líderes degradam as nossas liberdades, uma por uma. Muitos o fazem através de mudanças sutis nas políticas apresentadas em nome da ‘segurança pública’, da ‘moralidade’ ou da ‘segurança nacional’” [tradução livre].
Indo além, muitas das violações aos direitos democráticos são cometidas dentro das “quatro linhas” da própria Democracia.Não punir severamente a disseminação de fake news e abrandar a responsabilidade civil de jornalistas e veículos de imprensa no exercício de produzir informação de qualidade fazem parte das regras de um jogo, jogado no calor das emoções.
Censura ou liberdade moderada?
Quando sancionada em 2021, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (14.197 de 2021) vinha sendo alvo de críticas por causa da pressa com que foi debatida no Congresso Nacional e em função de dispositivos avaliados como “armadilha” para a defesa de direitos constitucionais.
Não se pode esquecer que o projeto propunha substituir a Lei de Segurança Nacional, considerada “entulho da ditadura” por boa parte dos parlamentares e da sociedade civil. Os argumentos contra a rapidez no debate público alertavam para a possibilidade de se trocar normativas de viés autoritário por prescrições excessivamente punitivas, ainda que em ambiente democrático.
É como andar sobre um campo minado. Tanto que na votação de terça-feira, 28 de maio, 92 deputados federais que haviam aprovado a íntegra da lei há cerca de três anos mudaram de ideia e foram favoráveis ao veto presidencial de Bolsonaro. Não surpreende. À despeito do oportunismo às vésperas de uma eleição, se tem travado uma discussão rasa e pouco produtiva sobre o tema.
Faltam argumentos para diferenciar claramente o papel de propagadores de informação ruim ou errônea, cuja intenção é expressar posições sustentadas por crenças pessoais e não a de causar danos. Além disso, existem atores com papéis diferentes nesse processo. Criar, produzir, disseminar e consumir desinformação deliberada, a que chamamos genericamente de fake news, são ações com pesos muito diferentes.
Outro aspecto relevante é o fato de que a propagação de mentiras ou informações manipuladas para desqualificar e desacreditar pessoas e instituições não diz respeito apenas ao conteúdo. Existem sistemas de recomendação que favorecem toda uma arquitetura de produções alicerçadas por técnicas de engajamento, impulsionadas por recursos psicológicos mapeados nas redes e agregadas em listas organizadas por mecanismos de busca na internet que não diferenciam fatos e opiniões, informação e propaganda. É um negócio intencionalmente modelado.
As razões para o veto ou para a proposta de criminalização estão longe de uma solução que privilegie a Democracia. Entre a censura, como alegam opositores do governo, e a liberdade de expressão moderada, como querem os aliados, tem muita coisa para se discutir com calma, ainda que com agilidade.
Os riscos para as eleições são só parte do problema, como vimos no caso das enchentes no Rio Grande do Sul. Mas o debate tende a não frutificar no Legislativo pela politização passional e partidária do tema. Como consequência, a legislação eleitoral teve de dar passos à frente.
Terrorismo informativo
Para proteger a integridade dos resultados nas eleições, o Judiciário brasileiro vem protagonizando medidas judiciais e a criação de normatizações que procuram coibir a disseminação de alegações infundadas sobre a conduta dos tribunais e o sistema de votação. Houve momentos em que a justiça eleitoral estabeleceu limites à liberdade de expressão, mas em casos extremos e justificados na grande maioria das vezes.
Com a troca da presidência no Tribunal Superior Eleitoral, já se especula que a atuação da justiça vai ser menos rigorosa no combate às fake news. Não tanto pela ministra Cármen Lúcia, que substitui Alexandre de Moraes na coordenação do pleito municipal deste ano. Os ministros André Mendonça e Nunes Marques é que vêm costurando nos bastidores uma postura menos intrusiva, na concepção deles.
Cármen Lúcia, no entanto, mesmo antes de assumir o cargo, esteve em reuniões com as empresas de tecnologia para discutir maneiras de coibir conjuntamente irregularidades já previstas nas resoluções do TSE. É bem provável que tenhamos um processo eleitoral menos polarizado em função da diversidade de acordos políticos municipalizados. Mas, as organizações não governamentais que atuam em defesa da Democracia já ligaram o sinal de alerta.
Existe o temor de que as estratégias de desinformação nas eleições de 2024 sirvam de laboratório para a disputa presidencial daqui a dois anos. A defesa do sistema de votação eletrônico, o combate à desinformação e o engajamento cívico da população estão no rol de ações propostas pelas entidades para amenizar os riscos de a sociedade se tornar ainda mais cética quanto à legitimidade dos processos democráticos.
A inércia na elaboração de leis que protejam as liberdades – não só a de expressão – no pantanoso cenário digital tem forçado a criação de uma jurisprudência para casos específicos em que o Judiciário tenha poder de decisão. Não é o ideal, sobretudo quando o “terrorismo informativo”, como escreveu o jornalista e pesquisador Carlos Castilho no Observatório da Imprensa, ganha feições mais preocupantes nas redes.
“A análise do custo social, político e econômico da disseminação de fake news durante as enchentes no Rio Grande do Sul deixou clara a existência de um fenômeno ainda mais grave que é o terrorismo informativo. Não se trata de apenas confundir as pessoas, mas de gerar incertezas e pânico em multidões”.
Assim como o Legislativo, em pé de guerra ideológica, arrasta o debate público sobre as fake news para a passionalidade do engajamento emocional e dos arranjos eleitorais, o Judiciário se engasga em decisões ancoradas por um certo apelo, também emocional é bom dizer, de se colocar como defensor da Democracia nesse cenário polarizado.
As resoluções que normatizam as eleições municipais, por exemplo, não foram discutidas na audiência pública promovida pelo TSE em janeiro e os argumentos em defesa dessa omissão, vista pelos extremistas como antidemocrática, usam justamente o cenário como justificativa.
Com ou sem intenção?
“Terrorismo informativo” pode parecer um termo excessivo, mas, antes de qualquer posicionamento a respeito, é bom ligar alguns pontos. Carlos Castilho tem razão ao enfatizar o pânico como intenção nesse ecossistema desinformativo. No Rio Grande do Sul chegou-se a propagar teorias sobre “lockdown climático” como consequência de “chuvas artificiais” provocadas por certos grupos de uma “nova ordem mundial”.
Boatos sobre o rompimento de um dique levaram militares a pedir a evacuação do bairro Mathias Velho, em Canoas. Afastados e investigados, eles são acusados de disseminar fake news e gerar pânico sem checar a veracidade da informação. O termo da acusação é inapropriado, visto que não se trata de produção de notícias falsas.
O caso é bem ilustrativo no atual debate: os militares agiram deliberadamente ou cometeram o equívoco de confiar em quem espalhou mentiras? A intencionalidade faz toda a diferença quando quem desinforma está sob os olhares da justiça.
Esta, aliás, é a sustentação dada pelo Supremo Tribunal Federal para uma decisão aguardada pelo Jornalismo há décadas. Em uma só canetada, reconhece o assédio judicial a jornalistas, no qual a própria justiça é também cúmplice, e associa a responsabilidade civil de profissionais e veículos de imprensa à negligência na apuração de informações e evidente intenção de dolo.
Os casos de assédio se sofisticaram em proporções muito similares às das estratégias de desinformação. Ações coordenadas contra jornalistas e órgãos de imprensa são uma espécie de intimidação à produção de notícias que denunciam irregularidades e criticam personalidades públicas.
Recente relatório da Unesco propõe a defesa da produção qualificada de informação através do Jornalismo, considerada um “bem público” necessário para conter o movimento de plantar a desconfiança nas instituições e nos métodos de aferição da realidade promovida por políticos e celebridades. Há estudos que mostram a relação entre a integridade da informação e a capacidade de escolha dos eleitores em momentos nos quais o voto disputa a atenção na mídia.
Assediar jornalistas é também uma estratégia de desinformação. Acontece que o Jornalismo parece já ter se rendido às crenças de que tem a cura para a desinformação, entendida como uma doença social, a ponto de assumir uma redundância conceitual na propaganda de si mesmo [texto em inglês].Toda e qualquer forma de Jornalismo é, por princípio, baseada em fatos. Ou não é Jornalismo. Mas nem toda a forma de desinformação é fake news. No jogo político passional e polarizado, essa confusão ajuda a manter a inércia no trato das soluções para um problema crônico e global.
No radar
- Especialistas reunidos no “Encontro Internacional de Educação Midiática”, no Rio de Janeiro, destacaram a necessidade urgente de políticas públicas voltadas para a educação midiática da população, a fim de combater a proliferação de fake news impulsionadas pela inteligência artificial. Eles enfatizaram que a educação midiática é um direito fundamental para a defesa da democracia. Já em São Paulo, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de lei que cria a “Semana Estadual de Educação Midiática” na rede pública de ensino e visa incentivar debates e ações sobre o uso da tecnologia e o combate à desinformação e fake news nas escolas. O projeto ainda precisa da sanção do governador Tarcísio de Freitas para entrar em vigor.
- A União Europeia está implementando uma campanha pública abrangente para combater a desinformação e as fake news nas próximas eleições. A estratégia inclui a veiculação de um vídeo educativo em 27 países e 24 idiomas, incentivando uma atitude crítica em relação ao conteúdo online e alertando sobre os riscos das deepfakes. Além disso, a Comissão Europeia estabeleceu um código de conduta para partidos políticos, redes sociais e empresas de inteligência artificial, visando limitar a produção e divulgação de conteúdo enganoso diante da crescente ameaça da desinformação impulsionada por tecnologias emergentes como a inteligência artificial.
Lembrando, para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.
Até semana que vem.