BOLETIM SEMANAL #11
Olá, pessoas.
Segundo reportagem do Estado de São Paulo na semana passada [texto para assinantes], integrantes do Governo Lula, lideranças do PT e de partidos aliados e comunicadores governistas fazem parte do “Gabinete da Ousadia”, que se reúne diariamente para pautar temas de interesse do Palácio do Planalto na mídia e articular ataques a opositores nas redes sociais.
Dito como já circula nas mídias digitais, um “Gabinete do Ódio” na versão petista [texto para assinantes].
Independente do mérito, as repercussões da matéria sequestram o termo fake news para justificar argumentos e desmentidos meramente retóricos e em boa parte eleitoreiros.
Aqui é Luciano Bitencourt com o boletim Desinformação em Pauta #11.
Eu e Daniela Germann não chegamos a discutir aqui na e-Comtextos o caso do “Gabinete da Ousadia”. Mas a polarização da sociedade aparece sempre que conversamos sobre desinformação nas eleições.
Quando não há fontes confiáveis de informação, a Democracia está sob ameaça, explica o professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), Samuel Barros. Mas, segundo ele, as pessoas já começam a ter uma noção da complexidade do fenômeno das fake news e seus impactos.
“Deixamos de acreditar que as fake news são apenas um problema moral para entendê-las como um problema social e político. Se a imagem na cabeça das pessoas corresponde aos fatos não sabemos, mas as pessoas começam a ter um mapa mental mais complexo”. E ponto”.
A declaração de Barros foi usada para repercutir uma pesquisa conduzida pelo Instituto Locomotiva sobre os riscos da disseminação de desinformação na internet. Para os entrevistados, o principal risco das fake news é a eleição de maus políticos.
Vamos pensar um pouquinho sobre isso.
O dito e o não dito
Diz o governo que o “Gabinete da Ousadia” não existe. A Secretaria de Comunicação, órgão que segundo a denúncia estaria articulando o grupo e promovendo as “reuniões de pauta”, desmente o financiamento de influenciadores pró-governo e a participação sistemática deles nos encontros.
Em síntese, as reuniões do chamado “Gabinete da Ousadia” não passariam de encontros rotineiros para a elaboração de estratégias visando propagar informações sobre as ações de governo. O que, portanto, não configura qualquer irregularidade ou intenção de promover mentiras nas redes sociais.
Dizem as lideranças do Partido dos Trabalhadores que é fake news produzida por uma parte da imprensa ligada ao bolsonarismo para equiparar “um esquema criminoso de produção industrial de mentiras e desinformação”, nas palavras do ministro Paulo Pimenta, à “opinião de ativistas digitais progressistas”.
Pimenta faz alusão ao “Gabinete do Ódio”, nome dado à estrutura paralela de comunicação do governo Jair Bolsonaro, confirmada em delação premiada pelo então ajudante de ordem, Mauro Cid. Para o PT, a comparação entre as duas estruturas de comunicação é uma tentativa de manipular a opinião pública para obter ganhos políticos.
Dizem os parlamentares da oposição, na maioria ligados ao bolsonarismo, que a denúncia encampada pela imprensa evidencia a existência de uma milícia digital de esquerda e que o governo pode estar usando dinheiro público para ganhar a atenção em temas controversos, além de desviar o foco dos problemas que enfrenta.
Tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, os opositores estão tomando medidas para investigar o “Gabinete da Ousadia” em diferentes instâncias. O recolhimento de assinaturas para a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a solicitação para incluir influenciadores governistas na investigação sobre as milícias digitais [texto para assinantes] em andamento no Supremo Tribunal Federal e um pedido formal para que o Tribunal de Contas da União apure se há desvio de finalidade na aplicação de recursos públicos são as mais notórias.
No campo da retórica, o mérito das acusações ainda precisa de mais apuração.
Vieses e generalizações
Não dá para negar que os influenciadores pró-governo supostamente associados ao “Gabinete da Ousadia” adotam as mesmas táticas dos bolsonaristas [texto para assinantes]. Em canais próprios nas mídias digitais, usam uma linguagem apelativa e sensacionalista, descontextualizam e distorcem determinados fatos em busca de uma audiência típica da polarização nas redes sociais. Um modo, aliás, muito eficaz de atrair engajamento e aderir ao modelo de negócio das plataformas para atrair financiamento.
A reportagem do Estadão, contudo, não traz evidências concretas de que esses influenciadores participam diretamente da agenda do governo nem de que recebem apoio financeiro. Apenas aponta indícios dessa ligação pelo alinhamento ideológico e pela proximidade com lideranças políticas das bases governistas, fundamentando essa ligação a partir de uma reunião interna do partido, na qual o secretário nacional de comunicação do PT, Jilmar Tatto, expõe o trabalho para fazer “disputa política” com os adversários.
Implícitas na série de matérias estão as razões do governo para criminalizar as fake news sobre a tragédia no Rio Grande do Sul. Houve, de fato, muito ruído sobre as ações de ajuda e resgate promovidas pelas autoridades, sobre as estratégias para conter os alagamentos, sobre as razões para justificar a crise climática, entre muitas outras questões. Mas nem tudo dá para ser caracterizado como fake news.
Na mesma semana em que o “Gabinete da Ousadia” apareceu no cenário noticioso, o ministro Paulo Pimenta, que hoje responde pela Secretaria Especial criada para coordenar os trabalhos de recuperação no RS, esteve na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Os deputados queriam saber porque o governo acionou a Polícia Federal para investigar conteúdos críticos à atuação do Estado no socorro às vítimas. As intenções, contudo, mostraram-se outras. Com mais de três horas de duração, o evento caracterizou-se, como esperado, por trocas de acusações e pouco espaço para explicações.
Para o historiador Fernando Horta, a abordagem do governo sobre as fake news só reforça o viés interpretativo dos opositores porque combate a desinformação exclusivamente por meios jurídicos e abre brechas para a generalização de um termo que só faz sentido quando “há um determinado interesse político-econômico” e “um trabalho de comunicação em rede” para “romper todo e qualquer consenso social”.
Fraude, não mentira
“Notícia falsa” é uma tradução para fake news que carrega uma série de problemas. Primeiro, induz que as mentiras são contadas por veículos de imprensa, como propuseram os políticos que popularizaram seu uso. Além disso, sugere que criminalizar uma mentira ou um argumento falso seria uma forma de cercear a liberdade de expressão porque não existe delito nisso.
Fake news tem mais a ver, na verdade, com “conteúdo fraudulento”. O problema não está em mentir apenas, mas na intenção de causar dolo, de prejudicar alguém ou desacreditar algo, distorcendo fatos, enganando, falsificando. Para caracterizar a fraude é preciso haver a intenção de alguém que sabe o que está fazendo para obter algum tipo de vantagem.
Na pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva sobre desinformação [texto para assinantes], uma das razões apontadas para explicar que 63% dos entrevistados já acreditaram em conteúdo eleitoral inverídico é que, mesmo que as fake news estejam mais associadas ao noticiário político, parte significativa dos pesquisados também já foi vítima de golpes na internet. Essa correlação entre fake news e golpe pode ser um indício de percepção mais elaborada a respeito de um fenômeno ainda incompreendido.
Outro aspecto relevante é o indício de que reconhecer informações falsas não impede as pessoas de compartilhá-las. Nesse caso, não estaríamos falando de um crime, mas de efeitos psicológicos ligados a crenças e percepções muito particulares. Descobertas recentes e ainda em estudo apontam o interesse no conteúdo e a surpresa diante do que dizem como emoções influenciadoras de nossas crenças na informação que consumimos.
Crer no que se diz sobre o “Gabinete da Ousadia” ou o “Gabinete do Ódio” depende, portanto, de fatores que extrapolam as correções de que o conteúdo pode ser falso. Quando atores políticos atacam veículos de imprensa como forma de se contrapor ao que publicam e saem em defesa de influenciadores especializados em monetizar seus canais por meio da polarização, a Democracia perde.
A relação entre fake news e a eleição de maus políticos não se resume à influência de quem mente para persuadir alguém a fazer escolhas. Concepções entre o bom e o mau são tão difusas quanto as apropriações de “notícias falsas” no discurso político.
No radar
- Levandamento realizado pelo Instituto de Pesquisa em Reputação e Imagem (IPRI) da FSB Holding revelou que o Instagram é a rede social mais influente entre os parlamentares brasileiros [texto para inscritos]. A plataforma foi citada por 82% deles como a principal ferramenta para acompanhar o noticiário político. Além disso, o estudo mostrou que as redes sociais são a segunda fonte de informação mais utilizada no Congresso Nacional. Na percepção dos parlamentares sobre a confiabilidade das informações, a maioria acredita que circulam em proporções similares notícias falsas e verdadeiras.
- O número de meios de comunicação partidários disfarçados de fontes de notícias superou a contagem de jornais diários locais legítimos nos Estados Unidos. Mais de 1.200 sites são apoiados por instituições de origem duvidosa ou simulam a publicação de notícias locais com fins políticos e eleitorais. Muitos deles têm como alvo estados onde o número de eleitores indecisos é grande, como Illinois, Pensilvânia e Flórida.
- O projeto de lei 2.338/2023, que regulamenta o desenvolvimento e uso da inteligência artificial no Brasil, tem recebido apoio de parlamentares, especialistas e representantes da sociedade civil. O relator do projeto, senador Eduardo Gomes, afirmou que a regulamentação da IA não deve ser confundida com outros temas, como o combate a fake news e a polarização política. Para o presidente da Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial, senador Carlos Viana, o projeto encontrou um ponto de equilíbrio entre o desenvolvimento da tecnologia e o respeito aos direitos humanos. Alguns debatedores, no entanto, consideraram o projeto tímido, como o secretário de Políticas Digitais, João Caldeira Brant, que criticou a ausência de medidas para reprimir deep fakes, e a advogada Estela Aranha, que defendeu a inclusão de mecanismos para inibir a discriminação algorítmica.
Ainda vale: para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.
Até semana que vem.