BOLETIM SEMANAL #12
Olá, pessoas.
Aqui é Luciano Bitencourt em mais um exercício semanal de reflexão sobre desinformação em processos eleitorais.
Uma reportagem sobre como a automatização de anúncios publicitários promovida pelo Google financia 70% da receita de sites extremistas, hiperpartidários e desinformativos nos trouxe uma questão interessante.
Eu e Daniela Germann ainda não tínhamos nos atentado para este ponto de vista ao longo de nosso levantamento sobre o tema aqui na e-Comtextos.
Um dos autores do estudo “Modelos de financiamento da desinformação: uma análise da monetização de websites hiperpartidários de direita”, o professor do Departamento de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica, Marcelo Alves do Santos Junior, argumenta que o debate sobre desinformação precisa considerar que liberdade de expressão não é liberdade de alcance.
“Você só consegue debater a contento o problema da desinformação quando você começar a debater a infraestrutura. E isso envolve debater, por exemplo, vieses algorítmicos ou monetização”.
Em outras palavras, Marcelo sugere que a gente pode dizer o que quiser, mas os algoritmos deveriam limitar a circulação de conteúdo ofensivo e as empresas de tecnologia, restringir a monetização de materiais “sem o mínimo de consenso social” e “interesse público”.
Diante de tantos entraves para a regulação das mídias digitais no Brasil e de intervenções judiciais para suprir a falta de regramento no combate à desinformação, comprometer as big tech com a produção de algoritmos mais orientados para a civilidade e com a desmonetização de conteúdo ofensivo nos parecem medidas capazes de respeitar a liberdade de expressão.
É o que propomos discutir nesta semana.
Extremismo e negacionismo
As empresas de tecnologia não só faturam com a desinformação. Estão também alinhadas com grupos extremistas e com a negação de estudos sobre a influência que exercem no cenário de polarizações em todas as esferas sociais. Dois casos bastante similares, um no Brasil e outro nos Estados Unidos, são bem ilustrativos.
Por aqui, advogados da Meta e políticos de extrema-direita têm assediado pesquisadores do NetLab, laboratório vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, para desqualificar os estudos que denunciam negligência e descumprimento de requisitos básicos para conter conteúdos fraudulentos.
Segundo a empresa, os trabalhos trazem “resultados enviesados” porque as instituições de pesquisa e os cientistas manifestam “opinião política contrária”, crítica às plataformas. Como há financiamento do Governo Federal, políticos ligados ao bolsonarismo vêm promovendo campanhas de difamação com base nos critérios de transparência, tanto dos grupos de pesquisa quanto dos órgãos de Estado.
É uma estratégia global e a Meta não é a única empresa a adotá-la. Nos Estados Unidos, o Observatório de Internet da Universidade de Stanford não vai mais conduzir pesquisas sobre as eleições por conta de processos judiciais recorrentes de políticos conservadores, que alegam uma conspiração com o governo de Joe Biden para censurar opositores.
No Congresso estadunidense, uma comissão criada por republicanos com o intuito de investigar agências de estado e empresas parceiras do atual governo tem intimado pesquisadores e estudantes de diferentes instituições para dar explicações sobre o suposto conluio, especialmente contra apoiadores do ex-presidente Donald Trump.
Produtores de desinformação usam um circuito lucrativo e sustentado por uma infraestrutura programática baseada na economia da atenção. Sites de conteúdo duvidoso estão copiando a estrutura formal do Jornalismo, por exemplo, sem adotar princípios e procedimentos essenciais da profissão, com um modelo de negócios voltado para o volume de tráfego, não para a qualidade da informação.
Além disso, sem a mediação entre a qualidade dos anúncios publicitários e dos veículos, os algoritmos de recomendação facilitam a circulação de conteúdos de baixa qualidade ou fraudulentos para grandes audiências também em meios tradicionais da imprensa.
Assimetrias na responsabilidade
Notícias que parecem falsas estão no cotidiano de cinco entre dez brasileiros, conforme pesquisa produzida pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos. Ao mesmo tempo, diz o Instituto Reuters, a proporção de pessoas que evitam notícias no país é quase equivalente em termos percentuais (47%). O interessante é que dois terços dos que consomem notícia usam plataformas, não sites jornalísticos.
Essa tendência de se evitar o consumo de notícias e usar plataformas de mídias sociais para obter informação vem se confirmando ao longo das últimas pesquisas. Uma novidade no relatório deste ano sobre estudos de Jornalismo da Reuters, entretanto, é que a predominância de notícias em vídeo e a fragmentação da audiência [texto em inglês] em diferentes plataformas se confirmaram. YouTube e WhatsApp somam mais da metade da preferência do público.
Carlos Baigorri, presidente da Agência Nacional de Telecomunicações, chama a atenção para uma assimetria que afeta diretamente os veículos tradicionais de comunicação. As plataformas mantidas pelas big tech são isentas de responsabilidade pelo conteúdo que impulsionam, ao contrário de jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, incluindo os sites de notícia.
Em seminário sobre os desafios regulatórios do ecossistema digital, promovido pela Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados, Baigorri defendeu um cadastro obrigatório para registro nas plataformas, nos moldes do que é necessário em compras de chips pré-pagos de celulares. As empresas de tecnologia cobram taxas extra pelo serviço de verificação de contas e perfis quando deveriam cumprir os dispositivos constitucionais do país, que vedam o anonimato para caracterizar as liberdades de pensamento, manifestação e expressão.
Se tem reduzido o debate sobre a responsabilidade das plataformas para a conformidade com as determinações sazonais sobre moderação de conteúdo [texto em inglês]. Para especialistas, as normatizações precisam criar incentivos para que as empresas de tecnologia invistam em melhorias nas próprias políticas, articuladas com as orientações jurídicas e o uso social adequado das ferramentas.
Talvez o principal entrave ainda seja o viés político e polarizado da disputa entre os decisores da regulação, por um lado, e a concentração de propriedade dos meios [texto em inglês] de comunicação em grandes conglomerados privados por outro.
Medidas com régua própria
Nos campos político e jurídico, a falta de consensos tem emperrado as decisões sobre a validade de medidas para conter a incivilidade e estabelecer critérios mais justos a respeito de como regular o ambiente digital sem ferir a liberdade de expressão. Enquanto isso, os agentes públicos vão ajustando a própria régua na medida de suas necessidades.
Há duas semanas, deputados da ala mais conservadora decidiram, na Comissão de Comunicação da Câmara, mudar o caráter público de uma reunião com a Meta para cobrar explicações sobre os partidos e os políticos em campanha eleitoral estarem proibidos de usar a API do WhatsApp Business para impulsionamento de mensagens. Como justificativa, a conversa a portas fechadas com a empresa procurava evitar “constrangimentos” e “só interessa à classe política”.
Ainda no Legislativo, o Projeto de Lei 1.904/2024, apelidado de “PL do Aborto”, foi justificado com a cópia de texto publicado em um site negacionista contra os direitos reprodutivos das mulheres. Apoiado pelo Conselho Federal de Medicina também com base em desinformação, foi retirado da pauta diante da pressão social. Mas, mostra uma certa recorrência no uso oficial de conteúdos infundados para justificar as crenças de legisladores em projetos regulatórios.
Monitorar continuamente as redes sociais e rastrear usuários com potencial influência pública são medidas que o Supremo Tribunal Federal está tomando para avaliar o impacto das informações sobre a Corte na sociedade. Com as eleições se aproximando, a preocupação é com a imagem do STF, desgastada pela polarização política e por críticas a decisões em inquéritos sem legislação definida. A medida em si não é considerada um problema, mas o receio é de que os dados sejam usados pelo Judiciário para reprimir opiniões em nome do combate à desinformação.
Já no Executivo, a Advocacia Geral da União enviou ao Tribunal Superior Eleitoral uma consulta sobre a prerrogativa de contestar notícias falsas ou desinformação sobre políticas públicas do Governo durante a campanha eleitoral. Os críticos consideram uma interferência no processo democrático por, supostamente, dar à AGU poderes de dizer o que é notícia falsa passível de restrição. Não só isso. Entram na conta o receio de assédio judicial e a interpretação de que casos assim são de competência da justiça comum, não da eleitoral.
É de se pensar: até as ações nas esferas do Legislativo, do Judiciário e do Executivo beneficiam a infraestrutura de monetização e de viés algorítmico das plataformas. Não só pela inércia em tomar decisões regulatórias, mas, sobretudo, por alimentar a polarização social. A liberdade de alcance, neste caso, sufoca o direito à livre expressão.
No radar
- Jornalismo é alvo de decisões judiciais em Santa Catarina. Moacir Pereira e o Grupo ND foram condenados a pagar R$ 30 mil de indenização ao professor da UFSC André Báfica, após terem divulgado uma notícia falsa envolvendo o nome do professor. Segundo a decisão judicial, Moacir utilizou uma foto de André em sua coluna, responsabilizando-o por uma pichação na universidade, algo que nunca aconteceu. Apesar de o Grupo ND alegar que o erro ocorreu por um problema técnico, a justiça entendeu acertadamente que a responsabilidade pelo equívoco é da empresa de comunicação. Paralelamente, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) repudiou a decisão da Justiça de Santa Catarina de censurar, a pedido do empresário Luciano Hang, uma coluna do jornalista Guilherme Amado, do portal Metrópoles, sobre mensagens de WhatsApp nas quais empresários defendiam um golpe de Estado. A Abraji considera a decisão “inadequada e desproporcional” porque a Constituição condena a censura prévia ou posterior em casos como este. Além disso, aponta que Hang lidera o ranking de figuras públicas que mais processam jornalistas e tentam cercear o trabalho da imprensa no país.
- Um novo fundo independente com aportes de US$ 2 milhões provenientes de cinco fundações filantrópicas foi lançado em junho de 2024 para apoiar o jornalismo de interesse público no Brasil. A iniciativa, articulada pela Associação de Jornalismo Digital (Ajor), visa fortalecer a sustentabilidade financeira de organizações de mídia brasileiras por meio de recursos institucionais. O fundo vai adotar uma abordagem de pluralidade, diversidade e interesse público em seus projetos e vai testar o modelo de governança e políticas de transparência ao longo dos próximos dois anos. O fundo espera receber contribuições adicionais de outras entidades filantrópicas e empresariais.
- A ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) vai questionar a Meta sobre o fato de a empresa não ter comunicado de forma transparente aos usuários brasileiros que começaria a usar publicações no Instagram e no Facebook para alimentar modelos de inteligência artificial. Especialistas em direito digital afirmam que a Meta teria contrariado o princípio da transparência previsto na LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Apesar ser possível optar por não contribuir com o treinamento de IA, o processo é criticado por ser de difícil acesso e “muito mais tímido” do que na União Europeia, onde a Meta já suspendeu o recurso.
Ainda vale: para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.
Até semana que vem.