BOLETIM SEMANAL #17
Olá, pessoas.
Vocês vão perceber que o boletim Desinformação em Pauta vai estar um pouquinho diferente a partir desta semana. Oficialmente, as candidaturas para as eleições municipais estão sendo definidas. Pelo calendário eleitoral, o prazo para conclusão desta etapa é 05 de agosto. Dez dias depois começa a propaganda em horário de rádio e TV.
Decidimos, aqui na e-Comtextos, explorar questões mais focadas em temas específicos e localizados na atuação política dos atores e na condução da Justiça Eleitoral, cuja responsabilidade de presercar a integridade das eleições, como vimos nos boletins anteriores, envolve garantir a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, coibir fraudes na propagação de conteúdos desinformativos.
Eu e Daniela Germann resolvemos, então, destacar aspectos relevantes no contexto eleitoral em andamento no país e tratar de fatos que, em nossa interpretação, devem mobilizar os candidatos, os eleitores, as empresas de tecnologia e a Justiça Eleitoral no enfrentamento à desinformação.
Diferente dos boletins anteriores, os links para acesso a informações complementares estão no final do texto. Consideramos que a fruição da leitura é facilitada assim. Além disso, passamos a assumir a partir de agora uma perspectiva mais própria na análise do impacto da desinformação nos acontecimentos políticos, com base nas pesquisas que temos feito ao longo dos últimos quatro meses.
Aqui é Luciano Bitencourt, intuindo que será necessário prestar mais atenção em questões de fundo sobre a atuação dos tribunais eleitorais e o legado da jurisprudência a ser criada a partir de agora.
“Senso de urgência” deslocado
Candidato à prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos esteve em audiência com a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a ministra Cármen Lúcia, na semana passada. Na pauta, o “senso de urgência” no combate às fake news ao longo da campanha. E, vale explicar, a urgência aqui tem a ver com a agilidade de resposta do TSE para tirar conteúdo falso e enganoso de circulação. Para Boulos, o repositório de jurisprudência implementado pela Justiça Eleitoral para o pleito deste ano ajuda nas decisões que precisam ser imediatas.
De fato, os tribunais têm essa mesma perspectiva. Como as decisões serão descentralizadas, os juízes de primeira instância precisam de toda a informação jurídica possível antes de bater o martelo. Mas há algo aí a se analisar e com bastante calma. Antes de tudo, a rapidez com que todo o tipo de desinformação se propaga não é páreo para quaisquer posicionamentos jurídicos que tentem evitá-la, por mais ágeis que sejam.
Outro ponto relevante, não dá mais para dizer que a disseminação de fake news é uma estratégia exclusiva da extrema-direita. Como se pôde observar nos Estados Unidos, tanto o atentado a Donald Trump quanto a renúncia de Joe Biden à candidatura deram munição para “militantes” à direita e à esquerda, inclusive no Brasil, criarem suas “verdades alternativas”. Todas com abrangência e escala, algo que precisa de uma certa estrutura operacional e financeira.
Deve-se levar em conta também que não existe uma jurisprudência robusta para embasar todas as decisões que precisarão se tomadas, pela inexistência de casos concretos e suficientemente analisados pela Justiça Eleitoral. Se as ameaças vistas como graves se confirmarem, o uso de Inteligência Artificial estará na linha de frente dos abusos esperados pelos tribunais. E esse campo é novo demais, mesmo para quem já mergulhou nele.
Não há dúvida de que o fenômeno da desinformação veio para ficar em processos eleitorais. A questão é entender se o foco dos tribunais está ajustado para o retrato que se pretende emoldurar sobre a atuação do Judiciário nestas eleições.
Ferramentas jurídicas não faltam ao TSE e, por consequência, às entidades regionais responsáveis pela organização e pela integridade do pleito. As armadilhas estão mais no campo político da atuação da Justiça no enfrentamento às “verdades alternativas” que já se acumulam no discurso eleitoral. Quanto mais uníssonas e institucionais forem as decisões dos juízes, mais representativa tende a ser a jurisprudência.
Falar em agilidade nesse cenário pode não ser o mais adequado. O professor José Eduardo Campos Faria, do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo (USP), aponta os problemas que considera relevantes nas tomadas de decisão no enfrentamento à desinformação:
“O primeiro problema é de natureza epistemológica: como definir em termos objetivos a diferença entre opinião e notícia equivocada, de um lado, e mentira expressa e acintosa, de outro?
O segundo problema é de legitimidade. Quando se justifica a tomada de medidas contra quem dissemina fake news de modo consciente e deliberado, quem está formalmente apto a tomar essas medidas?
O terceiro problema é de natureza legal. Ele envolve a tensão entre a liberdade de expressão assegurada pela Constituição e a dificuldade de definir objetivamente a distinção entre o que é apenas uma informação equivocada e o que é uma informação falsa e de má fé”.
Tirar conteúdo de circulação e vetar perfis em redes sociais talvez sejam questões menores diante desses desafios. São ações necessárias em certas circunstâncias, mas insuficientes porque, entre outras coisas, limitam a compreensão pública de um quadro mais geral.
Todo o aprendizado jurídico ao longo das últimas eleições, sobretudo depois de 2018, tem refletido nas resoluções do TSE um avanço, no sentido de se criar instrumentos de proteção ao direito do voto e à representação política das instituições. O repositório que Guilherme Boulos considera essencial para a agilidade da Justiça em conter conteúdo de campanha fraudulento é fruto dessa trajetória.
As preocupações do candidato à prefeitura de São Paulo, ainda que legítimas, são pontuais. Para a Justiça Eleitoral, a oportunidade é de avaliar e corrigir os equívocos que a excessiva preocupação com o conteúdo tem provocado. O “senso de urgência”, neste caso, estaria na atualização criteriosa das normas e não na agilidade de resposta.
Para leitura complementar
Bucci, Eugênio. “A doença infantil da democracia”. Estadão, 25 de julho de 2024. https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/a-doenca-infantil-da-democracia/.
Faria, José Eduardo Campos. “Fake news e liberdade de expressão”. Jornal da USP, 13 de junho de 2023. https://jornal.usp.br/articulistas/jose-eduardo-campos-faria/fake-news-e-liberdade-de-expressao/.
Mont’Alverne, Camila, et al. “The Electoral Misinformation Nexus: How News Consumption, Platform Use, and Trust in News Influence Belief in Electoral Misinformation”. Public Opinion Quarterly, 2024. https://academic.oup.com/poq/advance-article/doi/10.1093/poq/nfae019/7718066?searchresult=1&login=false.
Moreira, Paulo Roberto Silvério. “Influência do direito digital nas eleições municipais de 2024”. Migalhas, 24 de julho de 2024. https://www.migalhas.com.br/depeso/411839/influencia-do-direito-digital-nas-eleicoes-municipais-de-2024.
Newsguard’s Reality Check. “Faked Signature for Biden’s Withdrawal Letter? No”. Newsletter de 22 de julho de 2024. https://www.newsguardrealitycheck.com/p/faked-signature-for-bidens-withdrawal.
Pille, Letícia. “TSE deve ser ágil para tirar conteúdo falso da internet, diz Boulos”. Poder360, 24 de julho de 2024. https://www.poder360.com.br/poder-eleicoes/tse-deve-ser-agil-para-tirar-conteudo-falso-da-internet-diz-boulos/.
Recondo, Felipe. “O que se espera do STF pós-Bolsonaro”. JOTA, 23 de julho de 2024. https://www.jota.info/stf/do-supremo/o-que-se-espera-do-stf-pos-bolsonaro-23072024.
No radar
- O grupo de trabalho responsável pelo Projeto de Lei das Fake News, criado em junho, já perdeu um terço do prazo de 90 dias sem iniciar atividades, sem reuniões convocadas ou requerimentos protocolados na Câmara dos Deputados. Formado por 20 deputados, o grupo tem o compromisso de elaborar um relatório sobre a regulação das redes sociais e punições para a propagação de conteúdo desinformativo. “Má vontade política” e a priorização de outras pautas são apontadas como razões para o atraso. Arthur Lira, presidente da Câmara, enfatizou que o trabalho do grupo deve se intensificar em agosto e setembro.
- O senador Randolfe Rodrigues (PT-AP) apresentou um projeto de lei para aumentar a pena a quem disseminar fake news durante períodos eleitorais. A proposta modifica o Código Eleitoral, impondo reclusão de um a cinco anos e multa para quem espalhar informações falsas que possam influenciar eleitores ou comprometer a integridade do processo eleitoral. A pena pode ser aumentada, segundo a proposta, se o crime for cometido por mídia tradicional ou digital e em casos de discriminação.
Ainda vale: para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.
Até semana que vem.