BOLETIM SEMANAL #18
Olá, pessoas.
Toda vez que se discute os riscos para as eleições deste ano, o uso de Inteligência Artificial surge como primeiro da lista. A própria Justiça Eleitoral estabeleceu normas rígidas para evitar a disseminação de imagens, áudios e vídeos falsos em larga escala, além de determinar a identificação de toda propaganda criada sinteticamente.
É relativamente fácil e barato produzir conteúdo usando a imagem e a voz de pessoas conhecidas para inventar situações que nunca existiram e declarações que nunca foram dadas. Mas o dilema pode não estar no produto dessa “fabricação”. É o que argumentamos nesta semana.
Aqui é Luciano Bitencourt, trazendo mais um recorte do que eu e Daniela Germann temos percebido ao analisar na e-Comtextos os impactos da desinformação em processos eleitorais. E a nossa reflexão parte de alguns dados curiosos com os quais nos deparamos na última semana.
A gente não sabia, por exemplo, que tem candidato a vereador por São Paulo usando um programa de IA como “parceiro” de chapa. Pedro Markun, hacker e ativista, adota tecnologia semelhante ao ChatGPT para “analisar dados em grande escala, formular políticas públicas, fiscalizar contratos e interagir diretamente com a população”.
No caso da Lex, nome do programa de IA, a intenção não é confundir o eleitorado. Ao contrário, segundo o candidato, a “parceria” se baseia sempre em dados, ciência e evidências para dialogar com eleitores e sustentar projetos de campanha. Diz Markun, um outsider “antissistema”, que esta é a primeira candidatura híbrida do país, com a intenção de trazer a política “séria” para o debate público.
A Justiça Eleitoral também terá “parceiros” de Inteligência Artificial no enfrentamento à desinformação. Santa Catarina está adotando um programa criado pela Universidade Federal de Pernambuco em conjunto com o Tribunal Regional Eleitoral do mesmo estado para frear a disseminação de fake news.
Gonsalo Ribeiro, diretor geral do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina – TRE/SC, fala da “AletheIA” como solução eficiente no contexto atual.
“Para se ter uma dimensão, em 2022 nós conseguimos atuar em 200 peças de desinformação por meio de ouvidoria, Ministério Público e outras ferramentas que receberam denúncia. A AletheIA conseguiu combater 2.410.000 notícias que foram averiguadas [como falsas]”.
Em Goiás, o TRE vai adotar um programa semelhante, desenvolvido pela Universidade Federal goiana em parceria com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), cujo propósito é também conferir agilidade e eficiência no combate à desinformação eleitoral. Como se pode perceber, diferentes ferramentas serão avaliadas pela Justiça Eleitoral durante a campanha.
Considerando esse cenário, a jornalista, professora e pesquisadora Raquel Recuero sugere que é preciso entender o complexo ecossistema de desinformação e agir em várias frentes para combater a propagação de conteúdo falso, enganoso ou fraudulento. Esse enfrentamento inclui políticas públicas que fortaleçam a soberania digital no Brasil.
“A primeira coisa que uma autoridade pública precisa entender é que não dá para deixar vácuo informacional em situação de crise. As autoridades precisam pisar no espaço da informação e usá-lo a seu favor, colocar os canais oficiais e não deixar o vácuo, porque a desinformação se propaga num vácuo informacional”.
Dilema com nuances próprias
Nos Estados Unidos, o uso de paródia em períodos eleitorais é considerado uma tradição por expressar interpretações bem humoradas da vida política e seus personagens. Mas a figura de ironia e deboche virou instrumento de persuasão e fraude quando associada a produções com o auxílio de Inteligência Artificial.
Criadores de deepfakes justificam como paródia suas mentiras e invenções, usando o ambiente político para diluir a fronteira entre o humor eleitoral e a propagação de conteúdo fraudulento para desqualificar pessoas e instituições.
Parte dessa distorção é promovida pelas big tech. Por um lado, empresários como Elon Musk, dono do ex-Twitter, impulsionam pessoalmente esse tipo de conteúdo enquanto formulam políticas internas que confundem o discernimento dos usuários entre o verdadeiro e o falso. Por outro, as grandes empresas de tecnologia limitam a liberdade de expressão ao rotular informações críticas que desafiam consensos econômicos e políticos como fake news.
Recuero avalia que as big tech são hoje “praticamente um país independente” porque estabelecem globalmente suas próprias regras em todas as regiões onde atuam, mesmo conflitando com as leis e o regramento jurídico locais.
Em um país como o Brasil, um desafio a mais. Nosso dilema tem nuances muito próprias. Enquanto a absoluta maioria dos brasileiros defende punições severas a candidatos que adotarem ou se beneficiarem de informações falsas na campanha eleitoral, como mostra o Observatório Febraban, somos a população mais crédula em fake news, de acordo com levantamento da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 21 países.
Pode-se levantar muitos poréns nesses dados, especialmente por adotarem generalizações baseadas em uma amostragem que talvez não represente toda a população. Mas o dilema existe e compromete a confiança nas instituições responsáveis pela integridade eleitoral. Quem não consegue reconhecer informações falsas tende a não aceitar decisões que as denunciem.
Nestas eleições, a Inteligência Artificial terá uma função importante no combate à desinformação, ao mesmo tempo em que é vista como principal fonte de risco para a integridade do processo. Seus efeitos, contudo, dependem mais das estratégias de manipulação política e econômica em torno das vulnerabilidades informacionais do eleitorado do que do conteúdo desinformativo produzido por ela.
Informações complementares
Agência Brasil. Foco do TSE é garantir a realização das eleições, diz Cármen Lúcia. CNN Brasil, 2 de agosto de 2024, https://www.cnnbrasil.com.br/eleicoes/foco-do-tse-e-garantir-a-realizacao-das-eleicoes-diz-carmen-lucia/.
Demori, Marina. TRE de Goiás vai usar ferramenta exclusiva no combate a fake news nas eleições municipais. CNN Brasil, 4 de agosto de 2024, https://www.cnnbrasil.com.br/eleicoes/tre-de-goias-vai-usar-ferramenta-exclusiva-no-combate-a-fake-news-nas-eleicoes-municipais/.
Febraban. Maioria dos brasileiros quer punição severa para candidatos que utilizam Fake News. Febraban Notícias, 7 de 2024, https://portal.febraban.org.br/noticia/4160/pt-br/.
Franco, Edson. Brasileiros lideram ranking de quem cai mais facilmente em fake news. ISTOÉ, 2 de agosto de 2024, https://istoe.com.br/brasileiros-lideram-ranking-de-quem-cai-mais-facilmente-em-fake-news/.
Fried, Ina. 1 grande coisa: A defesa da paródia. Axios.com, newsletter, 30 de julho de 2024, https://www.axios.com/newsletters/axios-ai-plus-d9f262b0-4dcd-11ef-9acb-ef16708ba1bc.html.
Leite, Heraldo. Fake news: o Brasil é crédulo e educação midiática é saída. Outras Palavras, 29 de julho de 2024, https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/fakenews-o-brasil-e-credulo-e-despreza-educacao-midiatica/.
Palmeira, Carlos. Fim dos políticos? Pré-candidato a vereador em SP tem chapa junto com uma IA. TecMundo, 28 de julho de 2024, https://www.tecmundo.com.br/software/287358-fim-politicos-pre-candidato-vereador-sp-tem-chapa-junto-ia.htm.
Redação. Big techs usam combate às fake news para censurar informações críticas, afirma especialista. Jornal Grande Bahia (JGB), 3 de agosto de 2024, https://jornalgrandebahia.com.br/2024/08/big-techs-usam-combate-as-fake-news-para-censurar-informacoes-criticas-afirma-especialista/.
—. TRE-SC discute o uso de Inteligência Artificial nas eleições municipais de 2024. TVBV ONLINE, 7 de 2024, https://www.tvbv.com.br/tre-sc-discute-o-uso-de-inteligencia-artificial-nas-eleicoes-municipais-de-2024/.
—. Uso de inteligência artificial deve ser o principal desafio das eleições 2024, aponta Justiça Eleitoral. SC em Pauta, 7 de 2024, https://scempauta.com.br/2024/07/30/uso-de-inteligencia-artificial-deve-ser-o-principal-desafio-das-eleicoes-2024-aponta-justica-eleitoral/.
Sander, Isabella. “A desinformação usa a liberdade de expressão para enganar as pessoas”, diz pesquisadora de redes sociais. GZH, 2 de agosto de 2024, https://gauchazh.clicrbs.com.br/tecnologia/noticia/2024/08/a-desinformacao-usa-a-liberdade-de-expressao-para-enganar-as-pessoas-diz-pesquisadora-de-redes-sociais-clz0au94600q301622u8fby82.html.
Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina. Coletiva de Imprensa – Eleições Municipais 2024. Youtube, 30 de julho de 2024, https://www.youtube.com/watch?v=fvVoS6DgdFs.
No radar (com auxílio de IA)
- A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) abriu uma investigação contra o ex-Twitter por usar dados de usuários brasileiros no treinamento de seu modelo de inteligência artificial, o Grok. Segundo a ANPD, a plataforma alterou sua política de privacidade, tornando padrão o compartilhamento de informações sem consentimento. Isso significa que os usuários precisam desativar a coleta de dados manualmente caso não queiram que seus dados sejam utilizados. Recentemente, a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) foi proibida de adotar o mesmo procedimento no Brasil. A ANPD e o Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) consideraram que as práticas do ex-Twitter ferem a Lei Geral de Proteção de Dados.
- Os jornalistas brasileiros enfrentam um grande desafio nas eleições municipais com a proliferação de deepfakes, vídeos e áudios falsos que podem enganar os eleitores. Para lidar com essa ameaça, redações brasileiras estão adotando diversas medidas, lideradas pelo Projeto Comprova, que reúne 42 veículos de comunicação e 111 jornalistas responsáveis por verificar conteúdo falso e enganoso durante a campanha. Embora a incidência de deepfakes ainda seja baixa, os áudios falsos são um grande ponto de preocupação, pois são mais difíceis de identificar do que as imagens. Além disso, são muitas campanhas municipais para poucos checadores.
Ainda vale: para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.
Até semana que vem.