BOLETIM SEMANAL #19
Olá, pessoas.
Para proteger a integridade das eleições neste ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anunciou na semana passada uma série de medidas que incluem acordos de cooperação com as grandes empresas de tecnologia, formação de pessoas envolvidas com o sistema de votação e transparência na condução de processos judiciais relativos à propaganda e propagação de informações falsas.
No mesmo período, o Conselho de Comunicação Social e a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa puseram em pauta no Congresso Nacional a importância do papel do Estado e da educação midiática no enfrentamento à desinformação.
O tema também foi prioridade na quinta edição da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Informação, promovida pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Além de políticas públicas e da educação midiática, o fortalecimento do Jornalismo está entre as medidas consideradas essenciais pelos especialistas.
Tem um enfoque, entretanto, ainda pouco explorado nesse cenário. No debate entre os candidatos à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal, usando recortes dos discursos editados a seu favor, mobilizou mais audiência em suas redes sociais do que a transmissão televisiva. E com um requinte: os canais político-eleitorais do “coach-candidato” são também unidades de negócio amparadas pelos modelos das grandes empresas de tecnologia.
Aqui é Luciano Bitencourt, com o boletim semanal da e-Comtextos.
Como temos percebido, eu e Daniela Germann, as pressões do judiciário põem em evidência a necessidade de responsabilizar as big techs por permitir abusos e ilegalidades em suas plataformas. No âmbito eleitoral, contudo, talvez estejamos dando atenção demais a aspectos periféricos da desinformação.
“A mentira destrói seu voto”.
O slogan da campanha lançada pela Justiça Eleitoral com outras 11 entidades que representam o Jornalismo foca em conteúdos fraudulentos. Duas cartilhas foram produzidas, uma para eleitores e outra para jornalistas, explicando como o TSE funciona. A iniciativa faz parte das medidas recém-anunciadas para o enfrentamento da desinformação nas eleições.
Somam-se a ela, uma plataforma criada pela Polícia Federal para dar transparência a investigações e crimes eleitorais durante o pleito municipal, um disque-denúncia e um abrangente acordo com as grandes empresas de tecnologia para evitar a propagação de mentiras, alegações falsas e discursos violentos durante a campanha.
Google (incluindo o YouTube), Meta (respondendo por Facebook, Instagram, Threads e WhatsApp), TikTok, Kwai, ex-Twitter, LinkedIn e Telegram se propõem basicamente a priorizar informações fidedignas sobre o sistema de votação e a atuação da Justiça Eleitoral e auxiliar no enfrentamento à desinformação como descrito nos “memorandos de entendimento” recém-assinados e válidos até 31 de dezembro.
E é bom frisar: todo o esforço é para garantir informações confiáveis sobre o processo eleitoral. Em um sentido mais amplo, a desinformação mantém sua escala de abrangência e monetização amparada pelos negócios das big tech e por estratégias de marketing e comunicação pautadas em ganhos de audiência, sem compromisso com o conteúdo.
Vejamos alguns números: o “coach-candidato” da extrema-direita em São Paulo, Pablo Marçal, mobilizou seus 12 milhões de seguidores em 12 horas, com 25 postagens nas redes sociais promovendo sua campanha a partir de recortes do debate televisivo da Band. Entre seus adversários, Guilherme Boulos, o mais atuante, havia produzido apenas oito.
Isso fere alguma legislação? A rigor não. Mas mostra que os desafios para lidar com a desinformação não se resumem às medidas, ainda que necessárias, anunciadas pela Justiça Eleitoral. Marçal, como mostra o Projeto Brief, usa os mesmos recursos da promoção de seus produtos para se vender como candidato.
Em seus canais de comunicação, os “alunos” de seus cursos e os potenciais compradores são estimulados, inclusive financeiramente, a produzir conteúdo para ele aplicando as técnicas e as ferramentas de marketing nas mídias sociais. Um baita negócio, econômica e politicamente falando, que também tem uma espécie de slogan para a marca pessoal do “coach-candidato”.
“Primeiro eu ocupo o terreno, depois eu mudo a escritura”.
É a mesma estratégia usada pelas grandes empresas de tecnologia para diluir as pressões regulatórias que impactam nos modelos de negócio. O Google, por exemplo, anunciou ações complementares ao convênio assinado com o TSE, com investimentos em outras áreas consideradas essenciais pelos especialistas para o enfrentamento da desinformação nas eleições.
Apoio aparente
Aos Fatos e Agência Lupa, duas organizações jornalísticas especializadas em checagem, são parceiras do Google em novos produtos para monitorar as eleições. Também o programa Educamídia, do Instituto Palavra Aberta, recebe um aporte substancial para desenvolver programas de educação midática no país.
Ao cooperar com o Estado brasileiro em apoio às eleições municipais, ajudar a fortalecer o Jornalismo com o financiamento de projetos diversificados e ajudar financeiramente iniciativas de educação midiática, a gigante da tecnologia ocupa o terreno do enfrentamento à desinformação enquanto adota estratégias para mudar a escritura das regras ainda em debate no Brasil.
Já tratamos aqui a respeito disso, mas vale relembrar. São constantes os cortes orçamentários na estrutura de moderação de conteúdo, por exemplo. O trabalho de verificação promovido pelas big techs é precário e tem sido sistematicamente substituído por ferramentas de IA, pondo em risco a eficiência nos resultados. Além disso, existem indícios de que as políticas internas têm privilegiado a desinformação que gera audiência.
Outra preocupação diz respeito ao vácuo de informação deixado pelos programas de Inteligência Artificial, incluindo o da Google, ao não dar respostas para questões eleitorais. Essa determinação oferece riscos ao ambiente democrático tão danosos quanto dar respostas erradas ou baseadas em argumentos falsos. Segundo especialistas, quando algoritmos como o Gemini se recusam a dar respostas, isso abre espaço para o avanço de fraudes e mentiras.
Precisamos também levar em consideração que as empresas jornalísticas e os produtores de informação qualificada estão cada vez mais dependentes de produtos e serviços oferecidos por plataformas como as do Google. Os investimentos em checagem e educação midiática, apesar dos benefícios, escondem o direcionamento de projetos editoriais e o predomínio de negócios e parcerias em que só as grandes empresas de tecnologia dão as cartas.
Não por acaso, a Meta e o ex-Twitter foram alvo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados por uso indevido de dados pessoais dos usuários no Brasil para treinamento de IA sem aviso. Nos Estados Unidos, a Google perdeu na justiça seu primeiro processo na ação do Governo Federal contra o monopólio da empresa em mercados de mecanismos de busca online e serviços de publicidade.
Quando se comprometem com a integridade das eleições e anunciam investimentos em ações consideradas essenciais por especialistas no enfrentamento à desinformação, as grandes empresas de tecnologia assumem uma parte ainda pequena de suas responsabilidades. No cenário da comunicação política, a velocidade e o volume no faturamento com a economia da atenção tem se sobreposto constantemente aos direitos de cidadania.
Os acordos das big techs com a Justiça Eleitoral são um paliativo. Necessário no momento, mas insuficiente para conter estratégias de desinformação que vão além das mentiras e das ‘fake news’.
Para ir mais fundo
Coelho, Fabio. “Como estamos apoiando as eleições municipais de 2024 no Brasil”. Google, 8 de agosto de 2024, https://blog.google/intl/pt-br/novidades/como-estamos-apoiando-as-eleicoes-municipais-de-2024-no-brasil/.
Freitas, Ana, e Ricardo Borges Martins. “Marçal: o caos tem método”. Projeto Brief, 9 de agosto de 2024, https://substack.com/home/post/p-147517984?source=queue.
Galf, Renata. “Google anuncia combate a desinformação sem explicar sobre a moderação”. Estado de Minas, 5 de agosto de 2024, https://www.em.com.br/politica/2024/08/6914082-google-anuncia-combate-a-desinformacao-sem-explicar-sobre-a-moderacao.html.
Jardim, Lauro. “Eleições SP: atuação bizarra de Pablo Marçal no debate foi campeã de menções positivas nas redes”. O Globo, 11 de agosto de 2024, https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2024/08/eleicoes-sp-atuacao-bizarra-de-pablo-marcal-no-debate-foi-campea-de-mencoes-positivas-nas-redes.ghtml.
Merli, Karina. “Google restringe interações de Gemini sobre as Eleições 2024”. MobileTime, agosto de 2024, https://www.mobiletime.com.br/noticias/05/08/2024/google-restringe-gemini/.
Pahwa, Nitish. “Google Is on a Real Losing Streak. The Latest Blow Is the Most Brutal Yet”. Slate, 6 de agosto de 2024, https://slate.com/technology/2024/08/google-monopoly-antitrust-decision-defeat-big-tech.html?ref=thefuturist.
Redação. “Acesse a íntegra dos acordos com plataformas digitais para combater mentiras nas Eleições 2024”. Tribunal Superior Eleitoral, 6 de agosto de 2024, https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Agosto/confira-a-integra-dos-acordos-com-plataformas-digitais-para-combater-mentiras-nas-eleicoes-2024-1.
—. “Ações na internet exigem reflexão e responsabilidade, avaliam debatedores”. O Documento, 8 de agosto de 2024, https://odocumento.com.br/acoes-na-internet-exigem-reflexao-e-responsabilidade-avaliam-debatedores/.
—. “CCS aponta educação como ferramenta contra desinformação nas eleições”. SenadoNotícias, 5 de agosto de 2024, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/08/05/ccs-aponta-educacao-como-ferramenta-contra-desinformacao-nas-eleicoes.
—. “Eleições 2024: como o Google está apoiando eleições municipais brasileiras”. TV Cultura, 5 de agosto de 2024, https://cultura.uol.com.br/noticias/67649_eleicoes-2024-como-o-google-esta-apoiando-eleicoes-municipais-brasileiras.html.
—. “TSE e Aner lançam campanha informativa para auxiliar no enfrentamento das mentiras nas eleições”. Tribunal Superior Eleitoral, 6 de agosto de 2024, https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Agosto/tse-e-aner-lancam-campanha-informativa-para-auxiliar-no-enfrentamento-das-mentiras-nas-eleicoes.
Redaction. “DPC in Action against Twitter over AI Data Concerns”. RTÉ, 6 de agosto de 2024, https://www.rte.ie/news/business/2024/0806/1463712-dpc-takes-court-action-against-twitter-over-data-concerns/.
Revadam, Rafael. “Combate à desinformação envolve políticas de Estado, fortalecimento do jornalismo e educação midiática à sociedade, apontam especialistas”. Notícias do SBPC, 6 de agosto de 2024, https://portal.sbpcnet.org.br/noticias/combate-a-desinformacao-envolve-politicas-de-estado-fortalecimento-do-jornalismo-e-educacao-midiatica-a-sociedade-apontam-especialistas/.
No radar (com auxílio de IA)
- O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou novas regras para o uso e o tratamento de dados pessoais durante as eleições municipais deste ano. As principais determinações incluem a obrigação de partidos, candidatos e campanhas contratadas seguirem a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a necessidade de registrar e conservar operações de tratamento de dados pessoais, e a responsabilização de controladores e operadores pelo cumprimento das normas. As medidas visam coibir abusos e usos indevidos de informações dos eleitores, especialmente em municípios menores, onde há maior risco de acesso facilitado a bases de dados públicas.
- Novo estudo publicado na revista Communication Research revela que os leitores são mais desconfiados de jornalistas que fazem correções do que daqueles que apenas confirmam informações. Embora as pessoas geralmente confiem nos jornalistas, diz a pesquisa, elas ficam mais céticas quando corrigem afirmações falsas do que quando confirmam informações verdadeiras. Isso pode ocorrer porque as pessoas tendem a entender as correções como algo negativo, o que pode afetar a percepção sobre a honestidade e os motivos dos jornalistas. Para os especialistas, o desafio é encontrar formas de fazer correções sem parecer apenas um “estraga-prazeres”.
Ainda vale: para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.
Até semana que vem.