Como se opor ao sistema político traz vantagens no processo eleitoral [#23]

Extremismos e radicalizações antidemocráticas recortam o cenário (Imagem Freepik, criada com IA)

Olá, pessoas.

Já vínhamos acompanhando aqui na e-Comtextos argumentos dando conta de que o receio sobre o uso de Inteligência Artificial para manipular eleitores não seria a pauta principal das ações no enfrentamento à desinformação eleitoral.

Chegamos a apontar em nossos boletins outros riscos mais emergentes, como a potencial enxurrada de denúncias infundadas sobre desinformação à Justiça Eleitoral e a falta de conhecimento de juízes e juízas para proferir sentenças a respeito do real impacto de deepfakes e usos irregulares de IA durante a campanha.

Isso porque os tribunais eleitorais serão os promotores da jurisprudência que vai servir para calçar as regras em 2026. Dizendo de outro modo, as decisões sobre irregularidades identificadas agora serão a base para o regramento das eleições presidenciais.

Na semana passada, um grupo de pesquisadores do MIT Technology Review trouxe estudos e análises reforçando essa percepção. O uso de Inteligência Artificial para desinformar não está se confirmando como o principal desafio do maior ciclo de eleições que o mundo ocidental já viu.

O que percebemos, eu e Daniela Germann, é que a preocupação excessiva com deepfakes e informações inventadas pode ter tirado o foco de outros problemas cujo impacto para a integridade eleitoral e a Democracia, especialmente no Brasil, precisa ser melhor avaliado.

Aqui é Luciano Bitencourt, mergulhado em novos dados e evidências para a composição de um segundo relatório sobre Desinformação em Eleições a ser publicado em novembro. O primeiro relato exploratório já está disponível aqui, é só baixar. Ao longo dos próximos dois meses, vamos atrás de informações qualificadas para avaliar o cenário da comunicação política, tendo como base a campanha eleitoral no Brasil.

Nesta semana, trazemos argumentos que já nos estão ajudando em nossas observações. E eles nos mostram que as estratégias de campanha de Pablo Marçal na disputa pela Prefeitura de São Paulo e a postura de Elon Musk no cenário político global oferecem muito mais riscos aos processos eleitorais do que a presença da IA na disputa por votos.

Vamos explicar nosso ponto de vista.

As pesquisas sobre extremismos e radicalizações antidemocráticas sugerem resultados surpreendentes, ainda que não definitivos. Por exemplo, é possível que visões conservadoras e crenças pré-existentes sejam mais reforçadas pela exposição a argumentos contrários aos nossos do que pela nossa presença exclusiva em bolhas informativas.

Para Nina Santos, do Aláfia Lab, e Francisco Brito Crus, do InternetLab, essas bolhas que filtram a percepção da realidade são uma parte, talvez até pequena, do problema. Dizem os pesquisadores que não basta “furar” as bolhas informativas, tampouco usar fatos e checagens para confrontar opiniões. Sem políticas que garantam uma mídia plural, democrática, independente e sustentável, além de ferramentas que façam as pessoas compreenderem o fenômeno e agirem sobre ele, é pouco provável que mudemos o cenário.

Temos visto em nossas apurações que as estratégias de enfrentamento à desinformação eleitoral estão centradas em dois pontos básicos. Se tem investido na verificação dos conteúdos para refutar mentiras e conspirações, tanto quanto na restrição desses conteúdos que efetivamente se comprovam falsos, mentirosos ou violentos. 

Por um lado, as necessárias normatizações da Justiça Eleitoral não alcançam todas as dimensões da desinformação porque não exercem pressão jurídica sobre casos fora do contexto das eleições. Também não alcançam a sutilidade de um tipo de marketing político nada ético e pautado no engajamento a qualquer custo.

Quando o Tribunal Superior Eleitoral divulgou as normas para a propaganda política, em fevereiro deste ano, as deepfakes eram a bola da vez porque se anunciavam grandes possibilidades de falsificações e fraudes. Foi prudente determinar por aqui a proibição desse recurso na campanha, a obrigatoriedade de identificação de produções com uso de IA e o monitoramento em tempo real de impulsionamento de conteúdo político nas plataformas.

Já as grandes empresas de tecnologia vêm reduzindo as estruturas de moderação de conteúdo e investindo quase nada em ferramentas que auxiliam os estudos sobre tecnologias digitais. Justamente quando os riscos de desinformação são maiores, menos verificadores e checadores estão trabalhando para analisar se as postagens de usuários atendem às políticas das empresas e as leis do país, e menos dados estão disponíveis para pesquisadores avaliarem os reais efeitos disso nas plataformas.

Todas as grandes empresas de tecnologia assinaram protocolos de intenção com a Justiça Eleitoral e comprometeram-se a ser mais rígidas na verificação e na restrição de conteúdos considerados nocivos ao sistema eleitoral. A rigor, esses acordos têm surtido efeitos muito baixos, especialmente porque o foco das campanhas de desinformação política é bem outro.

Pesquisas de opinião pública atestam o receio da população com o impacto das fake news nas eleições, o uso de IA na propaganda dos candidatos, a crescente desconfiança nos veículos noticiosos, entre muitos outros fatores que ajudam a demonizar tecnologias e acentuar percepções extremas e radicalizadas.

Há, no entanto, questões mais sérias do que mensurar temperatura e pressão em tempos de eleição. Os pesquisadores que estudam o fenômeno da desinformação estão cada vez mais às escuras porque as grandes empresas de tecnologia escondem os dados públicos que coletam dos usuários e os critérios de como os usam. 

Quando disponíveis, esses dados estão concentrados em determinadas instituições amparadas por vantagens geopolíticas e geoeconômicas. O acesso é, portanto, privado de quem não goza dessas vantagens. 

O que isso tem a ver com a campanha eleitoral em São Paulo e a proibição do uso do ex-Twitter no Brasil?

Pablo Marçal disputa um cargo público para fazer propaganda de seu produto. No caso, ele mesmo. Dá para dizer que é o outsider dos outsiders. Ao polemizar com todo mundo, inclusive com quem divide princípios e valores semelhantes, ganha um certo status político por polarizar ainda mais o cenário. Notem, ganha espaço até neste boletim.

A estratégia de campanha se baseia em usar a estrutura de comunicação focada nas eleições para faturar com a economia da atenção. Marçal não debate, não tem propostas, nem mostra interesse político em esclarecer porque almeja a prefeitura da maior capital do país. Ele baseia os discursos, todos, em frases de efeito, agressões verbais, gestos caricatos e desrespeitosos, argumentos falsos ou distorcidos para “recortar” a própria imagem conforme as circunstâncias, sempre como “vencedor”.

Sem tempo de propaganda eleitoral gratuita, Marçal se aproveita do espaço destinado ao debate público para monetizar a polêmica e a degradação política. E esse tipo de desinformação é muito mais sofisticado do que o uso de deepfakes, com riscos muito maiores à Democracia do que ao processo eleitoral em si. O coach-candidato é mestre em furar a bolha e ganha votos, além de muito dinheiro, expondo-se justamente onde não é “bem quisto”.

Já Elon Musk surge como a voz da liberdade absoluta de expressão. No ex-Twitter, agora proibido no Brasil, reduziu ao máximo as políticas de moderação e tem usado a plataforma como canal para expor todo o tipo de preconceito, além de rivalizar com autoridades públicas em todos os países onde a regulação do uso de mídias digitais está efetivada ou em debate.

Musk também usa a estrutura de comunicação para capitalizar na economia da atenção. Em regiões mais polarizadas e fragilizadas politicamente, como o Brasil, peitar autoridades é também uma forma de ganhar certo status político. Para boa parte da população brasileira, Elon Musk é um visionário cerceado por ditaduras.

Ao personificar a “briga” com o ministro do STF, Alexandre de Moraes, o bilionário camufla uma disputa muito mais vantajosa: romper os limites da soberania dos países para emplacar modelos de negócio permissivos e lucrativos. Sem negócios relevantes no Brasil, a rivalização com as autoridades oferece poucos riscos econômicos no caso de uma derrota. Mas, os riscos políticos para quem o enfrenta, mesmo “vencendo”, são permanentes. No caso de Musk, a questão é apenas compor uma representação no Brasil. Contratar um escritório de advocacia já seria suficiente.

As estratégias de Marçal e Musk são similares e corroem as instituições democráticas. Os “cortes” do Marçal ajudam a enfraquecer a jurisprudência eleitoral ao contornar os limites impostos por regras que não se aplicam fora do contexto das eleições. E os ataques de Musk ao judiciário brasileiro, como faz contra autoridades de países democráticos que regulam os abusos da liberdade de expressão sem regras, impulsionam um tipo de engajamento tóxico contra instituições políticas e de Estado.

Ambas fomentam extremismos e radicalizações em escala e proporções que impactam o sistema democrático porque fortalecem posições autoritárias no longo prazo, especialmente ao distorcerem concepções de liberdade e representação política.

Essas estratégias monetizam um tipo de liberdade que se opõe a outros direitos legítimos. E ganha votos e representatividade política por apenas se opor, não por defender seus próprios valores.

Araújo, João. Nova edição de pesquisa traz insights sobre a política de comunicação através de aplicativos no período pré-eleições municipais. InternetLab, 3 de setembro de 2024, https://internetlab.org.br/pt/noticias/nova-edicao-de-pesquisa-traz-insights-sobre-a-comunicacao-politica-atraves-de-apps-em-período-pré-eleicoes-municipais/.

Batista, Jeferson. Eleições 2024: desinformação causa danos concretos na democracia e na vida das pessoas. Conectas, 28 de agosto de 2024, https://www.conectas.org/noticias/eleicoes-2024-desinformacao-causa-danos-concretos-na-democracia-e-na-vida-das-pessoas/.

Byrne, Marcia. Eleições, IA e fake news: o complexo desafio do marketing. Metrópoles (artigo de especialista), 7 de setembro de 2024, https://www.metropoles.com/colunas/m-buzz/eleicoes-ia-e-fake-news-o-complexo-desafio-do-marketing.

Caetano, Guilherme. Brasileiro vê suspensão do X por Moraes com motivação política e crítica multa por uso de VPN. Estadão, 4 de setembro de 2024, https://www.estadao.com.br/politica/brasileiro-ve-suspensao-do-x-por-moraes-com-motivacao-politica-e-critica-multa-por-uso-de-vpn/.

Chung, Myojung. Quer combater a desinformação? Ensine às pessoas como os algoritmos funcionam. Nieman Lab, 4 de setembro de 2024, https://www.niemanlab.org/2024/09/want-to-fight-misinformation-teach-people-how-algorithms-work/.

Criscuolo, Leandro Costa. Assim como o Brasil, a União Europeia também tem problemas com o X. Olhar Digital, 5 de setembro de 2024, https://olhardigital.com.br/2024/09/05/internet-e-redes-sociais/assim-como-o-brasil-a-uniao-europeia-tambem-tem-problemas-com-ox/.

Galf, Renata. Big techs têm retrocesso em ferramentas para eleição. Folha de São Paulo, 01 de setembro de 2024, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/09/big-techs-tem-retrocesso-em-ferramentas-para-monitorar-redes-na-eleicao.shtml.

Ghirotto, Edoardo. Ministra substituta do TSE diz que uso de ‘cortes’ pode ser abuso de poder econômico. Jota, 4 de setembro de 2024, https://www.jota.info/justica/ministra-substituta-do-tse-diz-que-uso-de-cortes-pode-ser-abuso-de-poder-economico.

Leite, Hellen. Passividade das big techs em relação às fake news afeta eleição, alertam especialistas. R7, 3 de setembro de 2024, https://noticias.r7.com/eleicoes-2024/passividade-das-big-techs-em-relacao-as-fake-news-afeta-eleicao-alertam-especialistas-03092024/.

Lupion, Bruno. Como entidades europeias avaliam o bloqueio do X no Brasil. Deutsche Welle, 4 de setembro de 2024, https://www.dw.com/pt-br/como-entidades-europeias-avaliam-o-bloqueio-do-x-no-brasil/a-70136347.

Motoryn, Paulo; Silva, Cláudio. Fomos até Angola ver as ‘300 casas’ de Pablo Marçal. Só encontramos 30. Intercept Brasil, 5 de setembro de 2024, https://www.intercept.com.br/2024/09/05/angola-casas-de-pablo-marcal-encontramos-30/.

Santos, Nina; Cruz, Francisco Brito. A culpa é da internet? Quatro Cinco Um (artigo de especialistas), 01 de setembro de 2024, https://quatrocincoum.com.br/artigos/laut/a-culpa-e-da-internet.

Pyl, Bianca. Entrevista: Meta de Pablo Marçal é “fazer dinheiro com a política eleitoral”. Intercept Brasil, 2 de setembro de 2024, https://www.intercept.com.br/2024/09/02/meta-de-pablo-marcal-e-fazer-dinheiro-com-a-politica/.

Rechmann, Aline. Musk diz que Moraes interferiu nas eleições de 2022. Gazeta do Povo, 01 de setembro de 2024, https://www.gazetadopovo.com.br/republica/musk-acusa-moraes-de-interferir-nas-eleicoes-de-2022/.

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Simon, Felix M., et al. AI’s Impact on Elections Is Being Overblown. Technology Review (artigo de especialistas), setembro de 2024, https://www.technologyreview.com/2024/09/03/1103464/ai-impact-elections-overblown/.

Sweney, Mark. Advertiser exodus from X gathers pace with 26% “planning to cut spending”. The guardian, 4 de setembro de 2024, https://www.theguardian.com/media/article/2024/sep/05/advertiser-exodus-x-survey-2025-elon-musk.

Teixeira, Pedro S. Brasil depende mais de Musk do que bilionário de negócios no país, dizem especialistas. Folha de São Paulo, 7 de setembro de 2024, https://www1.folha.uol.com.br/tec/2024/09/brasil-depende-mais-de-musk-do-que-bilionario-de-negocios-no-pais-dizem-especialistas.shtml.

Valente, Rubens. Apontamentos sobre o caso Elon Musk. Agência Pública (coluna de opinião), 4 de setembro de 2024, https://apublica.org/2024/09/apontamentos-sobre-o-caso-elon-musk/.

Vasques, Beto. O que está por trás da aposta de Elon Musk no tensionamento com a Justiça após bloqueio da rede social X no Brasil. The Conversation (coluna de opinião), 05 de setembro de 2024, http://theconversation.com/o-que-esta-por-tras-da-aposta-de-elon-musk-no-tensionamento-com-a-justica-apos-bloqueio-da-rede-social-x-no-brasil-238179.

Viana, Natalia. Precisamos falar sobre Alexandre. Agência Pública (coluna de opinião), 2 de setembro de 2024, https://apublica.org/2024/09/precisamos-falar-sobre-alexandre/.

  • O aumento do uso de bots que simulam interações humanas nas redes sociais está dificultando a utilização dessas plataformas como termômetro da opinião pública. Segundo especialistas, esses bots são frequentemente usados por atores mal-intencionados para manipular narrativas e amplificar opiniões extremas, criando uma falsa impressão de viralidade. Um exemplo recente envolve o ativista conservador Robby Starbuck, cujas críticas às políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) de grandes marcas americanas, como Tractor Supply e Harley-Davidson, ganharam força, em parte, devido à atividade de bots. O problema é que essas interações automatizadas fazem parecer que questões polarizadoras têm mais apoio popular do que realmente têm, distorcendo debates e ameaçando a democracia. Com o aumento da popularidade da IA generativa, espera-se que o uso de bots para inflar artificialmente o engajamento online se torne ainda mais comum.
  • Um escândalo envolvendo deepfakes pornográficos está causando indignação na Coreia do Sul. Grupos anônimos no aplicativo de mensagens Telegram estão utilizando inteligência artificial para criar imagens pornográficas falsas a partir de fotos de mulheres, muitas delas menores de idade, compartilhadas sem consentimento. A jornalista sul-coreana Ko Narin expôs uma rede organizada de grupos que trocam essas imagens, atingindo escolas e universidades. A polícia e o governo sul-coreano prometeram investigar e aumentar as punições, enquanto ativistas criticam a demora das autoridades em agir. O caso reacendeu o debate sobre a responsabilidade de plataformas digitais e a urgência de combater a misoginia online no país. Ainda mais em ano eleitoral.

Ainda vale: para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.

Até semana que vem.

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