BOLETIM SEMANAL #24
Olá, pessoas.
O termo da semana é “filantrocapitalismo”. Diz respeito a um tipo de investimento feito pelas grandes empresas de tecnologia para promover o chamado Jornalismo independente com inovações nos modelos de negócio.
Google e Meta, por exemplo, fomentam há algum tempo a infraestrutura de produção e distribuição de notícia, enquanto a OpenAI e a Microsoft estão investindo em formas de incrementar a produção de conteúdo noticioso com o uso de Inteligência Artificial.
Um estudo publicado recentemente no International Journal of Cultural Studies sugere que esse tipo de “filantropia tecnológica” esconde um custo relativamente alto para a autonomia econômica e editorial dos veículos jornalísticos digitais amparados pelas big techs.
O detalhe é o seguinte: as mesmas empresas que modelam o circuito de desinformação por se omitirem na moderação de conteúdos fraudulentos e se oporem à regulação do uso de suas plataformas, pondo em crise a produção de informação qualificada, também se colocam como solução para “remodelar” o jornalismo e ajudá-lo a “prosperar na era digital”.
E o que isso tem a ver com desinformação nas eleições?
Entidades jornalísticas, parte significativa delas financiadas pelas big techs, associações de mídia e a Justiça Eleitoral se apoiam no “jornalismo profissional” como antídoto para a desinformação durante as eleições. Campanhas de conscientização e parcerias na produção de conteúdo explicativo sobre o processo eleitoral se somam às medidas de enfrentamento a fraudes e mentiras que circulam em anúncios políticos neste período.
Em tempos de comunicação instantânea e mudanças significativas no consumo de notícia, vale perceber certos movimentos que influenciam a distribuição de conteúdo jornalístico e induzem sua recomendação com base em padrões e critérios para atender a economia da atenção.
Aqui é Luciano Bitencourt com a leitura crítica da semana na e-Comtextos. Eu e Daniela Germann pensamos bastante a respeito dessa ideia de valorização do jornalismo “profissional” como garantia de qualificação para o acesso e consumo de informação amparada em fatos.
Em nossa abordagem, discutimos a possibilidade de o Jornalismo ser mais uma peça em uma complexa engrenagem que movimenta a roda da desinformação.
O Jornalismo e os fatos
Em nosso relato exploratório sobre desinformação em eleições (disponível gratuitamente aqui), destacamos como o Jornalismo tem sido engolido por estratégias de comunicação voltadas para o consumo instantâneo e superficial de informação. A ponto de alguns “players” do “ecossistema” usarem o slogan “Jornalismo baseado em fatos” para vender seu “profissionalismo”.
Muitas aspas são necessárias aqui porque o sentido dado a cada termo pode inferir significados distintos, dependendo da lente que se usa na leitura do cenário. Primeiro, é importante ressaltar que a dependência econômica sempre foi um dilema para o negócio da informação com status de bem público, essencial em democracias, desde quando o Jornalismo emergiu como ocupação reconhecida socialmente.
Agora, no entanto, estamos falando de um universo empresarial, estruturado por startups que ampliaram o circuito de notícias e, ao mesmo tempo, diversificaram opções de acesso à informação qualificada. Também há uma gama bastante ampla de modelos de negócio, dos sem fins lucrativos a financiados por grandes grupos empresariais. As fontes de receita não se resumem mais à tradicional venda de anúncios ou às estratégias de produção financiadas por nichos de interesse. Mas a audiência ainda é chave para o produto jornalístico.
Eis o segundo ponto importante: na economia da atenção, a quantidade de acessos a determinado conteúdo depende de fatores dissociados da informação como entendida no Jornalismo. Uma opinião, uma sátira, uma ironia, um rumor, uma fofoca, tudo reverbera como relevante porque nos foi recomendado por códigos programados para “ler” nosso comportamento nas plataformas digitais, além de valorizar palavras-chave, declarações recortadas sem contexto e frases de efeito que fisgam nosso interesse.
O irônico nesse cenário é que os algoritmos que exploram a falta de alfabetização midiática, a instabilidade política e a carência de investimentos em informação qualificada e acessível, típicas de países periféricos como o Brasil, são produzidos pelas mesmas empresas que põem grana em projetos e produtos para “profissionalizar” o Jornalismo.
Para se ter uma ideia, o Google vem enfrentando processos nos Estados Unidos por lucrar com a tecnologia de anúncios, ao mesmo tempo que fatura com os editores. Em suma, a gigante da tecnologia monopolizou as relações de produção no campo da comunicação a ponto de fazer os anunciantes pagarem mais e os publishers ganharem menos. Sem contar o monopólio nos sistemas de busca, onde os parâmetros para a recomendação de conteúdo em pesquisas na internet não são transparentes e valorizam informações de procedência duvidosa.
Isso nos leva a um terceiro aspecto importante: esse modelo das big techs influencia diretamente como a desinformação circula.
“Colonialismo digital”
Recentes pesquisas de opinião pública mostram que os hábitos no consumo de informação jornalística estão mudando rapidamente. No Reino Unido, por exemplo, pela primeira vez a internet superou a TV como fonte de notícia. Contudo, quando o assunto é eleição, a TV oferece mais confiança para quem busca informação qualificada.
No Brasil, os dados são um pouco diferentes. A TV ainda é a principal fonte de informação sobre qualquer assunto. Os veículos tradicionais de notícia superam as mídias sociais no acesso a notícias, mas os níveis de confiança na imprensa continuam caindo. E essa é uma tendência global.
Produzido pela Fundamento Análises, com o apoio da Associação Nacional dos Editores de Revista e o Instituto Palavra Aberta, o relatório “Como o brasileiro se informa?” (disponível aqui) traz insights que nos ajudam a entender o contexto. A qualidade da informação é uma preocupação para quem acompanha notícias regularmente, as pessoas estão mais atentas e interessadas em checar o que recebem e as fontes que mostram evidências têm alta credibilidade.
Por outro lado, os níveis de desconfiança em todos os tipos de veículo cresceram e o direcionamento ideológico está influenciando a escolha de fontes de informação. Não temos, portanto, como enfatizar algum aspecto positivo ou negativo no levantamento porque a interdependência entre os fatores aparentemente contraditórios diz muito sobre este cenário.
No âmbito eleitoral, a defesa do Jornalismo tornou-se indispensável para a preservação da integridade, tanto da informação quando das eleições. Democracias consolidadas convivem com uma imprensa livre e diversificada em um mercado equilibrado por investimentos públicos e privados, fortemente regulado contra monopólios e amparado por políticas que valorizam o exercício profissional.
Por isso, a forte presença das big techs como suporte quase exclusivo a projetos jornalísticos independentes representa, especialmente em países periféricos, uma espécie de “colonialismo digital” capaz de minar a pluralidade e a diversidade de produções qualificadas, como mostra o estudo publicado no International Journal of Cultural Studies.
Em outras palavras, a mão que alimenta a produção qualificada é a mesma que contamina o prato onde a informação é servida.
Para ir mais fundo
Belanger, Ashley. DOJ Claims Google Has ‘Trifecta of Monopolies’ on Day 1 of Ad Tech Trial. Ars Technica, 9 de setembro de 2024, https://arstechnica.com/tech-policy/2024/09/doj-claims-google-has-trifecta-of-monopolies-on-day-1-of-ad-tech-trial/.
Ferreira, Vitoria. TSE aposta no jornalismo profissional para combater a desinformação nas eleições municipais. Observatório da Imprensa, 12 de setembro de 2024, https://www.observatoriodaimprensa.com.br/eleicoes-2024/tse-aposta-no-jornalismo-profissional-para-combater-a-desinformacao-nas-eleicoes-municipais/.
Maher, Bron. Twice as Many Brits Got 2024 Election News from TV as from Social Media, Ofcom Finds. Press Gazette, 10 de setembro de 2024, https://pressgazette.co.uk/news/ofcom-2024-election-news-sources-television-social-media-working-class/.
Nóbrega, Liz. Metade dos brasileiros evita falar de política em grupos nos apps de mensagem. desinformante, 5 de setembro de 2024, https://desinformante.com.br/comportamento-whatsapp-politica/.
Redação. Campanha da ABERT e Abratel combate a desinformação no período eleitoral. Acaert, 10 de setembro de 2024, https://www.acaert.com.br/noticia/54726/campanha-da-abert-e-abratel-combate-a-desinformacao-no-periodo-eleitoral.
Redação. Televisão é meio mais popular para acessar notícias no Brasil, diz pesquisa. Acaert, 11 de setembro de 2024, https://www.acaert.com.br/noticia/54743/televisao-e-meio-mais-popular-para-acessar-noticias-no-brasil-diz-pesquisa.
Santos, Mathias Felipe de Lima. Big tech is painting itself as journalism’s savior. We should tread carefully. Nieman Lab, 10 de setembro de 2024, https://www.niemanlab.org/2024/09/big-tech-is-painting-itself-as-journalisms-savior-we-should-tread-carefully/.
Scofield, Gilberto, Jr. Desafios éticos e financeiros: o que está em jogo no empreendedorismo em mídia digital. O Ofício, 11 de setembro de 2024, https://gilscofield.substack.com/p/desafios-eticos-e-financeiros-o-que.
Silva, Julio. Mídias digitais expandem o debate político, mas podem afetar os processos eleitorais. Jornal da USP, 11 de setembro de 2024, https://jornal.usp.br/radio-usp/midias-digitais-expandem-o-debate-politico-mas-podem-afetar-os-processos-eleitorais/.
Tobitt, Charlotte. Online Overtakes TV as Biggest Source of News in UK for First Time. Press Gazette, 9 de setembro de 2024, https://pressgazette.co.uk/media-audience-and-business-data/media_metrics/online-overtakes-tv-as-biggest-source-of-news-in-uk-for-first-time/.
Villela, Fernanda. Seria a ‘desinformação’ uma vantagem?Estadão, 12 de setembro de 2024, https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/seria-a-desinformacao-uma-vantagem/.
No radar (com auxílio de IA)
- A Polícia Federal (PF) deflagrou uma operação contra um grupo criminoso que propagava fake news sobre candidatos a prefeito em cidades do Rio de Janeiro, com foco em São João de Meriti. Na ação, foram cumpridos quatro mandados de prisão preventiva e 15 de busca e apreensão. A investigação revelou que os envolvidos, muitos com experiência em cargos públicos, contratavam “atores” por até R$ 2 mil mensais para disseminar informações falsas em locais de grande circulação. O esquema, que já atuava desde 2016, tinha um planejamento estruturado e visava influenciar o resultado das eleições em pelo menos 10 municípios. A operação foi batizada de “Teatro Invisível”.
- O fundador do Telegram, Pavel Durov, anunciou a remoção da função “pessoas próximas” no aplicativo devido a problemas com bots e fraudes. Além disso, prometeu melhorias na moderação da plataforma. As mudanças surgem após sua prisão na França, relacionada a acusações de ser permissivo com atividades criminais no aplicativo. Durov enfatizou que, embora a grande maioria dos usuários seja inocente, um pequeno grupo tem prejudicado a imagem do Telegram. A plataforma também vai desativar o upload de mídias no Telegraph, para evitar o uso indevido do serviço.
- Elon Musk chamou o governo australiano de “fascista” após a definição de uma nova lei que prevê multas de até 5% das receitas globais das plataformas de internet que não combaterem desinformação. A legislação exige que as empresas estabeleçam códigos de conduta para evitar a propagação de notícias falsas, sob a supervisão de um regulador. A Ministra das Comunicações, Michelle Rowland, afirmou que a medida aumenta a transparência e a responsabilidade das plataformas. Musk gerou reações de legisladores australianos, que o acusaram de defender a liberdade de expressão apenas quando lhe convém.
- Uma alegação infundada de que imigrantes haitianos estariam comendo animais de estimação em Springfield, Ohio, nos Estados Unidos, ganhou notoriedade após ser mencionada por Donald Trump em um debate presidencial. A origem do rumor, segundo apuração do NewsGuard, remonta a uma postagem em um grupo privado do Facebook onde a moradora Kimberly Newton compartilhou uma história de desaparecimento de um gato de um vizinho sem ter conhecimento direto sobre o que efetivamente ocorreu. Autoridades locais afirmaram não haver evidências de crimes relacionados a animais cometidos pelos imigrantes.
Ainda vale: para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.
Até semana que vem.