BOLETIM SEMANAL #25
Olá, pessoas.
O Global State of Democracy deste ano, relatório publicado periodicamente por iniciativa da organização internacional IDEA, conclui que um em cada três eleitores vive em um país onde a qualidade do sistema democrático foi posta em xeque.
Nos últimos quatro anos, diz o levantamento, de cada cinco eleições disputadas, em uma houve contestação dos resultados nas urnas. Em pleitos cada vez mais disputados, a participação do eleitorado diminuiu. Quatro em cada nove países atesta uma piora na qualidade da Democracia, especialmente no que diz respeito à representação e aos direitos políticos.
Na Europa e nas Américas, mesmo em países onde os processos democráticos são altamente valorizados, houve “piora significativa” nos índices. Apesar do “progresso substancial” na administração eleitoral em todo o mundo democrático, diz o relatório, irregularidades na votação e na contagem de votos sufocam a confiabilidade na representação política.
As muitas ameaças verificadas, no entanto, ainda não são suficientes para minimizar os processos eleitorais, que continuam sendo vistos como um mecanismo eficiente para o controle popular das decisões e dos representantes escolhidos por meio do voto.
Vale a leitura do relatório, disponível aqui.
Na e-Comtextos, temos pensado sobre o peso da desinformação no declínio do processo democrático em todo o mundo. Eu e Daniela Germann, no levantamento para o relato exploratório que publicamos recentemente (pode ser acessado aqui), já havíamos percebido que diferentes indicadores, em diferentes levantamentos, mostram a fragilidade crescente dos índices de confiança na Democracia. Um aspecto, no entanto, parece mais incisivo em períodos eleitorais: a violência política.
Aqui é Luciano Bitencourt, com a leitura crítica da semana. Precisamos falar sobre o aprofundamento da crise na Democracia e sua relação com um tipo de violência que contorna os limites da lei, promove tensões sociais e impulsiona ameaças aos sistemas de representação.
Intimidação impune
Reportagem especial da Reuters traz evidências a respeito de como extremistas intimidam opositores políticos nos Estados Unidos e saem impunes. São cada vez mais comuns, conforme a apuração, ameaças a juízes, membros do congresso, autoridades eleitorais e servidores públicos.
O pano de fundo, como sabemos, é a defesa da liberdade de expressão. As leis estadunidenses são mais brandas quanto a manifestações agressivas porque, segundo especialistas, é preciso um tom muito explícito de violência para que a Justiça compre a agressão como crime.
Um dos personagens acompanhados pela Reuters, Geoffrey Giglio, fã de Donald Trump, já está na mira de investigadores há algum tempo. Suas investidas de intimidação levantam a perspectiva de violência como algo que o agressor gostaria que outros fizessem, mas que ele mesmo não faria. Giglio não cruza a linha que protege o próprio discurso, por mais insultuoso que seja. Suficiente para evitar processos judiciais e o risco de prisão.
Os casos mais graves de violência política tendem a estar ligados à extrema-direita, ainda que ocorra em todo o espectro ideológico. Desde a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, dos 22 casos de morte por incidente político levantados pela Reuters, 15 foram protagonizados por extremistas de direita.
Existe uma correlação entre a violência explícita e a retórica agressiva de lideranças políticas. Desmentido à exaustão, inclusive pelas pessoas identificadas como autoras do boato, o caso dos haitianos que estariam comento animais de estimação de vizinhos em Springfield, Ohio, ganhou proporções estrategicamente funcionais para a chapa de Trump na disputa eleitoral pela presidência dos Estados Unidos.
A narrativa tem servido para ampliar as críticas às políticas de imigração do governo Joe Biden, as quais estariam sob a responsabilidade da adversária e vice-presidente, Kamala Harris. Também tem dado munição para teorias conspiratórias sobre o interesse dos democratas em “importar” o maior número possível de imigrantes ilegais para angariar votos.
Candidato a vice na chapa de Trump, o senador J. D. Vance, que é de Ohio, sustenta a mentira em comícios e entrevistas, como a que deu à CNN na semana passada, com um certo requinte de ameaça.
“Se eu tiver que inventar histórias para que a imprensa preste atenção no sofrimento do povo americano, então é isso que eu vou fazer” (tradução livre).
Em Springfield, estão entre 15 e 20 mil haitianos e o status de proteção temporária dado pelo atual governo permite que esses imigrantes peçam permanência no país até fevereiro de 2026. Segundo as autoridades locais, os haitianos já estão integrados à economia e não têm envolvimento com supostos desaparecimentos de animais domésticos nem direito a voto. Mas, passaram a ser alvo de ataques e ameaças.
Estratégia compartilhada
Essa estratégia, nos lembra o Aos Fatos, é recorrente também no Brasil. Nas eleições presidenciais de 2022, os venezuelanos não chegaram a ser acusados de comer animais de estimação, mas foram associados a essa possibilidade devido ao grande número de imigrantes que entrou no território brasileiro em busca de asilo. Agora, as mesmas táticas de desinformação se repetem.
A campanha eleitoral à prefeitura de São Paulo tornou-se uma espécie de laboratório para o impulsionamento de violência política. Debates rasteiros monopolizam o noticiário e dão palco para o que Clara Becker e Gabriela de Almeida, da Redes Cordiais, chamam de “polarização do afeto”.
Para alcançar um público extremamente dividido, os argumentos de campanha, especialmente em debates públicos, reforçam a negação de adversários e a distorção de fatos. Acusações sem prova, analogias descabidas, mentiras, encenações e agressões físicas poluem o cenário, já bem farto de exemplos que influenciam as pesquisas eleitorais e orientam um tipo enviesado de marketing político.
Mais grave, as duas candidatas na corrida eleitoral, Tabata Amaral e Marina Helena, são vítimas de comentários misóginos e machistas no ex-Twitter (mesmo bloqueado no Brasil), no Reddit e no YouTube, e em grupos privados de aplicativos de mensagens. Tabata chegou a acionar a Justiça Eleitoral contra a circulação de deepfakes nas quais ela aparece em imagens pornográficas.
Como já comentamos em boletins anteriores, especialistas já vinham indicando que a adulteração de vídeos traria muito mais impacto na promoção de violência política, especialmente contra mulheres, do que na criação de mentiras para influenciar diretamente o voto de eleitores. Um em cada quatro casos computados pelo Observatório de Violência Política e Eleitoral entre abril e junho deste ano foi direcionado a mulheres com protagonismo político.
Pablo Marçal, agredido fisicamente por José Luiz Datena ao vivo na TV, confirmou em reunião com apoiadores o uso consciente da violência verbal para provocar seus adversários.
“Esse período não é de proposta, aprenda a jogar. É de mostrar quem as pessoas são”.
Os eleitores parecem ter percebido quem é quem. Marçal perdeu pontos nas pesquisas.
Limites forçados
Enquanto corre contra o tempo para reverter as decisões judiciais que bloquearam o ex-Twitter no Brasil, Elon Musk sustenta outro tipo de violência ainda mais perverso no cenário da comunicação política. Dono de uma plataforma influente, especialmente nos Estados Unidos, o empresário mobiliza uma rede de desinformação na qual ele mesmo é o principal disseminador de argumentos falsos ou enganosos.
Pelo menos três alegações do “chefe” ferem as próprias políticas e alcançaram mais de 1,2 bilhão de visualizações. Em 42 ocasiões, Musk associou o partido democrata com a importação de “eleitores ilegais” por meio de políticas permissivas de imigração. Em outras sete vezes fez alegações falsas sobre a integridade do sistema eleitoral, já aberto para votação pelo correio em alguns estados. Além disso, compartilhou postagem gerada artificialmente em áudio com declarações inventadas e que supostamente seriam de Kamala Harris.
Por aqui, o ex-Twitter justificou que o desbloqueio temporário da plataforma na semana passada, descumprindo determinação da Justiça, foi acidental. Para o Supremo Tribunal Federal, no entanto, houve a tentativa de deslegitimar as decisões da Corte e de mostrar que a plataforma poderia facilmente contornar os limites impostos pela legislação.
Especialistas avaliam que o ex-Twitter não tem alternativa, se quiser voltar a funcionar no Brasil. Precisa obedecer às determinações do judiciário. Primeiro, estão esgotando os recursos possíveis, uma vez que a decisão é do STF e não de um único juiz, como Elon Musk faz parecer. Os investidores também podem estar pressionando por uma solução, temendo um desgaste irreversível da imagem pública dos negócios ligados ao empresário. E as críticas internacionais podem ter sido maiores do que o esperado por ele.
Seja como for, a plataforma tem sinalizado que está se mobilizando para cumprir os prazos de formalização dos serviços no país, ainda que com dificuldades. No final da semana, a advogada que seria anunciada como representante legal do ex-Twitter desistiu da posição por razões “estritamente pessoais”. Mas especula-se que as notícias sobre a possibilidade de a plataforma ter descumprido o bloqueio judicial deliberadamente estejam entre as principais motivações para que as negociações entre ela e Musk não tenham avançado.
As dimensões de violência política verificadas no cenário atual mostram nuances bastante diversificadas, com impactos danosos para a confiança na Democracia e suas instituições. Se pode perceber, com base nos casos descritos aqui, uma relação íntima entre as estratégias de extremistas, candidatos a cargos públicos e personalidades influentes, todos com capital suficiente para desafiar os limites estabelecidos pelas autoridades que representam o sistema democrático.
O impulsionamento dado por plataformas como o ex-Twitter, os discursos belicosos de candidatos interessados na “polarização do afeto” e a disposição de grupos extremistas para inflamar o debate público são partes de um mesmo circuito de desinformação.
Para ir mais fundo
Barbosa, João; Rudnitzki, Ethel. “Marçal aproveita agressão de Datena para viralizar acusação falsa de estupro contra tucano”. Aos Fatos, 16 de setembro de 2024, https://www.aosfatos.org/noticias/marcal-agressao-datena-acusacao-falsa-estupro/.
Braun, Julia. “Rede social X: 3 fatores que podem estar por trás de decisão de Musk de cumprir decisões de Moraes”. BBC News Brasil, 19 de setembro de 2024, https://www.bbc.com/portuguese/articles/c749x0mrjmko.
Becker, Clara, de Almeida, Gabriela. “Pablo Marçal e Datena: vítimas e algozes da polarização política”. Metrópoles (coluna de opinião), 19 de setembro de 2024, https://www.metropoles.com/colunas/nas-redes/pablo-marcal-e-datena-vitimas-e-algozes-da-polarizacao-politica.
Butcher, Isabel. “Usuários brasileiros relatam acessar X no País sem VPNs”. MobileTime, 18 de setembro de 2024, https://www.mobiletime.com.br/noticias/18/09/2024/brasileiros-acessam-x/.
Eisler, Peter; Parker, Ned. “Trump fan targets MAGA foes with menace – and gets away with it”. Reuters, 19 de setembro de 2024, https://www.reuters.com/investigations/trump-fan-targets-maga-foes-with-menace-gets-away-with-it-2024-09-19/.
Fu, Angela. “It’s Easy to Find Misinformation on Social Media. It’s Even Easier on X”. Poynter, 19 de setembro de 2024, https://www.poynter.org/fact-checking/2024/how-elon-musk-twitter-takeover-accelerated-misinformation/.
Funke, Daniel. “Trump campaign amplifies baseless rumors of migrants stealing pets”. AFP, 13 de setembro de 2024, https://factcheck.afp.com/doc.afp.com.36FW4WA.
Jones, Tom. “Blaming Media, JD Vance Continues to Push Silly yet Dangerous Conspiracy Theory about Pets”. Poynter, The Poynter Institute, 16 de setembro de 2024, https://www.poynter.org/commentary/2024/jd-vance-springfield-ohio-conspiracy-theory/.
Macário, Carol; Rômany, Ítalo. “‘Cadeirada’ de Datena reacende fakes e vira até propaganda eleitoral paga de candidatos”. Lupa, 16 de setembro de 2024, https://lupa.uol.com.br/jornalismo/2024/09/16/cadeirada-de-datena-reacende-fakes-e-vira-ate-propaganda-eleitoral-paga-de-candidatos.
Magalhaes, Luciana. “Advogada brasileira contratada para representar X no País desiste do cargo”. Terra, 20 de setembro de 2024, https://www.terra.com.br/byte/advogada-brasileira-contratada-para-representar-x-no-pais-desiste-do-cargo,59e691e192d84d79162351b95a61915ell6clqe2.html.
Menezes, Luiz Fernando. “Desinformação que viralizou nas eleições de 2022 no Brasil ressurge em discurso de Trump na disputa contra Kamala Harris”. Aos Fatos, 16 de setembro de 2024, https://www.aosfatos.org/noticias/desinformacao-eleicoes-2022-brasil-ressurge-discurso-trump/.
Nunes, Vinícius. “Alexandre de Moraes impõe multa de R$ 5 milhões ao X (antigo Twitter)”. Jota, 19 de setembro de 2024, https://www.jota.info/stf/do-supremo/alexandre-de-moraes-impoe-multa-de-r-5-milhoes-ao-x-antigo-twitter.
—. “Moraes manda advogados do X comprovarem representação legal da empresa no país”. Jota, 19 de setembro de 2024, https://www.jota.info/stf/do-supremo/moraes-manda-advogados-do-x-comprovarem-representacao-legal-da-empresa-no-pais.
Olivieri, Fernando. “Democracia cai pelo oitavo ano seguido, diz estudo — e o que a IA pode ter a ver com isso”. Exame.com, 17 de setembro de 2024, https://exame.com/mundo/democracia-cai-pelo-oitavo-ano-seguido-diz-estudo-e-o-que-a-ia-pode-ter-a-ver-com-isso/.
Redação. “Prefeito critica Trump, Vance e Kamala após fake news – 17/09/2024 – Mundo – Folha”. Folha de S.Paulo, 17 de setembro de 2024, https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/09/prefeito-de-cidade-dos-eua-alvo-de-fake-news-critica-trump-vance-e-kamala.shtml.
—. “Vídeo: Marçal admite que cena em ambulância pós-cadeirada”. Folha de São Paulo, 20 de setembro de 2024, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/09/marcal-admite-que-fez-cena-em-ambulancia-depois-de-cadeirada-veja-video.shtml.
Redaction. “Musk Misleading Election Claims Viewed 1.2bn Times on X – with No Fact Checks”. Center for Countering Digital Hate, 8 de agosto de 2024, https://counterhate.com/research/musk-misleading-election-claims-viewed-1-2bn-times-on-x-with-no-fact-checks/.
—. “Reality Check Commentary: Facebook Fabulism: If Your Neighbor Says Haitians Eat Cats, Check It Out”. NewsGuard’s Reality Check, 20 de setembro de 2024, https://www.newsguardrealitycheck.com/p/reality-check-commentary-facebook.
Tardaguila, Cristina. “🔥SP: Uma campanha de misoginia e baixaria”. Newsletter Ebulição, 17 de setembro de 2024, https://lupanewsletter.substack.com/p/sp-uma-campanha-de-misoginia-e-baixaria.
No radar (com auxílio de IA)
- Há seis semanas do dia da eleição nos Estados Unidos, alguns estados iniciaram a votação presencial, permitindo que os eleitores exerçam seu direito de forma antecipada. A votação já começou em locais como Texas e Califórnia, enquanto outros estados se preparam para abrir as urnas nas próximas semanas. Autoridades eleitorais estão trabalhando para garantir a segurança e a integridade do processo, em meio a preocupações sobre desinformação e possíveis tentativas de interferência. A expectativa é de que um número recorde de eleitores participe das eleições de 2024, com muitos optando por votar antecipadamente para evitar filas e garantir sua participação.
- Candidatos a vereador estão utilizando jingles e conteúdos publicitários gerados por inteligência artificial (IA) nas eleições municipais brasileiras sem informar os eleitores, desrespeitando as regras estabelecidas pela Justiça Eleitoral. Entre 85 candidatos que declararam gastos com empresas de IA, pelo menos 38 não sinalizaram o uso da tecnologia em seus conteúdos. A produção de jingles com IA, que pode ser feita a baixo custo, tem gerado materiais semelhantes, muitas vezes com letras idênticas, alterando apenas o nome do candidato. Especialistas alertam que a falta de transparência pode acarretar punições, mas a confusão nas normas e a dificuldade em identificar o uso de IA dificultam a fiscalização.
- Anúncios políticos irregulares no Google ferem as diretrizes da própria plataforma, que proíbe o impulsionamento deste tipo de conteúdo desde abril. Foram identificados 52 anúncios ativos de candidatos a vereador e a prefeito, veiculados entre 7 e 11 de setembro, todos pagos diretamente pelos CNPJs das candidaturas. A maioria dos anúncios estava associada a Reginaldo Adelino Fortes (PP), em Duque de Caxias (RJ). A falta de transparência nos dados sobre esses anúncios, como alcance e público-alvo, contraria as diretrizes do TSE.
Ainda vale: para quem deseja ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, Meio, Nexo e Núcleo Jornalismo são ótimas alternativas.
Até semana que vem.