Argumentos já desmentidos retomam fôlego na desinformação política [#26]

Na “democracia veloz”, as mídias digitais pedem controle social (Imagem criada com IA – Freepik)

Olá, pessoas.

Sabe aquelas informações falsas ou enganosas que circulam reiteradas vezes, mesmo quando já foram desmentidas à exaustão? Leonardo Cazes, chefe de reportagem do Aos Fatos, e Ítalo Rômany, repórter da Agência Lupa, jornalistas experientes em coberturas sobre urnas eletrônicas no Brasil, apontam este como um problema recorrente.

Rômany diz que é como “enxugar gelo”. Peças de desinformação sobre o voto eletrônico já desmentidas em 2018 ou 2020 voltaram a circular com pequenas mudanças de contexto.

Na Espanha, um estudo feito pela agência de checagem Newtral levantou que uma em cada quatro verificações de desinformação política envolve conteúdo reutilizado em contextos diferentes. E apurou cinco tipos de tática comuns por trás da produção dessas peças.

Além das pequenas alterações no conteúdo para deixá-lo atual, são usados números inventados ou descontextualizados, diferentes fontes ou porta-vozes para reforçar a narrativa falsa ou enganosa, determinados aspectos do discurso são suavizados ou enfatizados para manter a essência da desinformação, além de também serem usadas múltiplas afirmações verificáveis em uma única mensagem para dificultar o trabalho de checagem.

Cazes e Rômany, no entanto, provocam uma reflexão muito mais importante no cenário em que a divulgação apressada e enviesada de fatos políticos influencia a descrença no voto e nas instituições democráticas. Dizem os jornalistas que a imprensa, de modo geral, acostumou-se a confirmar o que dizem as vozes oficiais para refutar conteúdo que desinforma.

Aqui é Luciano Bitencourt, preparado para as urnas (seguras e auditáveis) no próximo final de semana, mas incomodado com o dilema de que a inexistência de uma verdade única leva à crença em mentiras sobre os fatos. 

Eu e Daniela Germann apontamos no relato exploratório sobre Desinformação em Eleições (que pode ser acessado aqui) a complexidade do cenário da comunicação política atual, atravessado por transformações profundas na produção e no consumo de informações qualificadas.

Vamos explorar um pouco mais fundo essa ideia.

Diminuiu o número de candidatos nas eleições municipais deste ano. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2020 foram inscritos 481 mil pessoas pediram registro para concorrer aos cargos de prefeito e vereador em todo o país. Agora, são 463 mil.

Mamede Said, pesquisador da Universidade de Brasília, tem uma explicação.

“A crise de candidaturas é reflexo de um problema mais geral que nós temos, que é o desencanto com a política, principalmente por parte dos mais jovens. E eu entendo que isso se deve, em grande medida, à atuação dos atores políticos”.

Tem um componente de violência, como sugerimos na semana passada, que também ajuda. Acrescentamos outro: a velocidade com que as instituições democráticas são atacadas, sem oportunidade de refutação ou defesa.

Georghio Tomelin, conselheiro do Observatório da Democracia, da Advocacia Geral da União, fala de uma “dromocracia”, na qual a “democracia veloz” depende de uma “gestão atenta aos meios digitais”.

“Quem decide rápido pode acabar decidindo mal, pois a tomada de decisão de modo consciente precisaria de tranquilidade para seleção de premissas”.

É um tempo em que o eleitor, por exemplo, com a liberdade de gostar ou não de alguém publicamente, é confundido por práticas de calúnia e difamação contra quem é considerado inimigo, não adversário político. A “gestão atenta aos meios digitais” estaria, portanto, associada a mecanismos de controle e verificação. Em bom português, regras que a sociedade pode controlar através de suas instituições.

Quando a Justiça Eleitoral se antecipa à ausência de leis para coibir abusos na propaganda, no uso de mídias digitais para impulsionar conteúdo fraudulento e na adoção de tecnologias ainda obscuras para falsear argumentos políticos, a instituição estaria agindo de acordo com princípios “dromocráticos”. Quer dizer, tentando responder à democracia veloz.

Elon Musk, desinformador contumaz, parece ter aberto uma espécie de caixa de pandora ao opor o ex-Twitter às autoridades em todo o mundo. A plataforma, ainda impedida de funcionar no Brasil, vem demonstrando disposição em retroceder no embate com o Supremo Tribunal Federal (STF). Mas o empreendimento de Musk faz eclodir uma situação que merece mais atenção.

Como sustenta Marie Santini, diretora do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da UFRJ (Netlab), há agora uma hiper fragmentação do debate político, na qual reverberam câmaras de eco cada vez mais restritas ao jeito de ver as coisas que determinados grupos comungam.

“Não é uma polarização dentro de uma plataforma, é uma polarização em plataformas diferentes, ou seja, cada campo político está discutindo numa plataforma específica e não está conseguindo ser confrontado e debater com outro campo”.

É quase como se a falsidade não tivesse mais espaço de refutação, a não ser fora dessa divisão hiper fragmentada. A bolha em que Elon Musk reverbera, entretanto, estaria entre os 10 países mais populosos do planeta se as fronteiras não fossem virtuais.

O mercado do falseamento político se alastra também em pesquisas de intenção de voto. A legislação eleitoral só considera pesquisas válidas quando inscritas no site do TSE. Ainda assim, neste ano, registros com metodologias irregulares e de empresas financiando o próprio trabalho colocam sob suspeita um instrumento que tende a influenciar o eleitor indeciso.

Há algum tempo, no Brasil, se discute a validade das pesquisas eleitorais com base em argumentos que desconhecem o valor de um trabalho estatisticamente válido, que segue critérios claros e uma metodologia rigorosa. O retrato periódico que esse instrumento de análise oferece é muito útil na avaliação de tendências, não na adivinhação dos resultados efetivos nas urnas.

Pesquisas falsas se somam ao conteúdo fraudulento já bastante comum em períodos eleitorais, numa proporção que ainda não tínhamos visto, segundo Mara Telles, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais e professora da Universidade Federal de Minas Gerais.

“No Brasil, existe um mercado de pesquisas idôneas, mas começaram a ser produzidos inúmeros trabalhos com resultados bastante questionáveis e até falsos, que enganam eleitores e candidatos. É um fenômeno nunca visto no país que faz parte de um processo de promoção deliberada de desinformação global”. 

As diferentes nuances de desinformação estão corroendo as instâncias de mediação que poderiam refutar mentiras sobre os fatos. Em parte porque as estratégias dos desinformadores é desqualificar jornalistas, cientistas e instituições responsáveis por informações qualificadas com o intuito de manipular o sentido dado à verdade.

Por exemplo, tem sido recorrentes os comentários agressivos e até caluniosos contra jornalistas que cobrem política nestas eleições. Muitos dos xingamentos são promovidos por algoritmos. Na semana entre 5 a 11 de setembro, a Coalizão em Defesa do Jornalismo levantou 119 ataques a jornalistas em nove capitais, todos em defesa de candidatos.

É preciso reconhecer, entretanto, que o próprio Jornalismo está dando respostas insuficientes. São comuns as manchetes em que a violência política de certos candidatos é destacada, com expressões entre aspas para delegar a responsabilidade do que se está noticiando ao campo político. A cobertura jornalística nas eleições concentra uma dose acima do necessário de falsas polêmicas e declarações predatórias para o debate público.

Também se está aceitando demasiadamente as justificativas de órgãos oficiais para desmentir argumentos falsos, conspiratórios e fraudulentos. A questão aqui não é duvidar das instituições democráticas, mas colocá-las em um lugar de onde se possa avaliá-las com o senso crítico necessário.

Como enfatizam Leonardo Cazes e Ítalo Rômany, dois jornalistas ligados a organizações de checagem de fatos, o combate à desinformação precisa pressionar as instituições democráticas no sentido de dar mais transparência às suas práticas. Para isso, é preciso abrir espaço para vozes críticas que ofereçam argumentos legítimos e credíveis, o que não se consegue destacando opiniões e frases de efeito para ganhar machetes e audiência.

de Assis, Carolina. “Jornalistas enfrentam desinformação ao cobrir urna eletrônica no Brasil”. LatAm Journalism Review by the Knight Center, 24 de setembro de 2024, https://latamjournalismreview.org/pt-br/articles/jornalistas-enfrentam-desinformacao-ao-cobrir-urna-eletronica-no-brasil/.

Esperidião, Maria e Kleim, Rafaela Sinderski Leticia. “Não leia os comentários: a violência digital contra jornalistas voltou com força nos debates e entrevistas”. Observatório da Imprensa (artigo), 27 de setembro de 2024, https://www.observatoriodaimprensa.com.br/eleicoes-2024/nao-leia-os-comentarios-a-violencia-digital-contra-jornalistas-voltou-com-forca-nos-debates-e-entrevistas/.

Farranha, Ana Claudia. “Eleições e lógica algorítmica: um balanço recente”. Congresso em Foco, 27 de setembro de 2024, https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/eleicoes-e-logica-algoritmica-um-balanco-recente/.

Noblat, Ricardo. “ATENÇÃO! Cresce o número de falsas pesquisas de intenção de voto”. Metrópoles, 22 de setembro de 2024, https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/atencao-cresce-o-numero-de-falsas-pesquisas-de-intencao-de-voto.

Quinn, Ben. “Elon Musk revida governo do Reino Unido após não ser convidado para cúpula tecnológica”. The guardian , 26 de setembro de 2024, https://www.theguardian.com/technology/2024/sep/26/elon-musk-uk-government-invite-tech-summit.

Ramos, Miquel. “La fiebre de la desinformación”. Público (opinião), 17 de setembro de 2024, https://blogs.publico.es/dominiopublico/64621/la-fiebre-de-la-desinformacion/?doing_wp_cron=1727190360.3559520244598388671875.

Redação. “TSE divulga número de candidatos nas eleições municipais 2024”. Portal da Câmara dos Deputados, 27 de setembro de 2024, https://www.camara.leg.br/noticias/1099005-tse-divulga-numero-de-candidatos-nas-eleicoes-municipais-2024/.

Redação. “Período eleitoral expõe agressões à imprensa de apoiadores da extrema direita”. LinkedIn (Coalização em Defesa do Jornalismo), 18 de setembro de 2024, https://www.linkedin.com/pulse/per%C3%ADodo-eleitoral-exp%C3%B5e-agress%C3%B5es-%C3%A0-imprensa-de-apoiadores-da-extrema-wgm5f/.

Redaction. “Musk Boosts Four Favorite Misinformation Superspreaders”. NewsGuard’s Reality Check, 27 de setembro de 2024, https://www.newsguardrealitycheck.com/p/musk-boosts-four-favorite-misinformation.

Tomelin, Georghio Alessandro. “As ameaças da desinformação eleitoral na era da ‘dromocracia’”. Consultor Jurídico (opinião), https://www.conjur.com.br/2024-set-25/as-ameacas-da-desinformacao-eleitoral-na-era-da-dromocracia/.

Viana, Natalia. “A suspensão do Twitter afetou a desinformação eleitoral?” Agência Pública (artigo), 24 de setembro de 2024, https://apublica.org/2024/09/a-suspensao-do-twitter-afetou-a-desinformacao-eleitoral/.

  • O uso crescente de inteligência artificial generativa na política global está criando um “gap de detecção”, especialmente nos países do Sul Global, onde as ferramentas para identificar conteúdo falso se mostram ineficazes por reproduzir preconceitos nos sistemas de treinamento. A falta de dados representativos e de alta qualidade para países como o Brasil resulta em altas taxas de falsos positivos e negativos na detecção de conteúdo criado para manipular a opinião pública. Especialistas alertam que as ferramentas disponíveis se concentram em dados de mercados ocidentais, deixando jornalistas e pesquisadores vulneráveis a uma onda de desinformação.
  • Pesquisadores do MIT e da Universidade Cornell descobriram que chatbots de inteligência artificial podem reduzir a crença em teorias da conspiração em até 20% ao interagir com usuários sobre essas ideias. Em um estudo com 2.190 participantes, as conversas personalizadas com um modelo de linguagem de IA demonstraram eficácia em desfazer crenças, mesmo entre aqueles que consideravam as teorias conspiratórias refutadas fundamentais para sua identidade. Os pesquisadores destacam que os chatbots podem fornecer contra-argumentos relevantes, com novas abordagens para combater a desinformação. A pesquisa sugere que a personalização do diálogo é crucial para influenciar opiniões.

Até semana que vem.

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