BOLETIM SEMANAL #27
Olá, pessoas.
Interessante artigo da escritora Katie Notopoulos no MIT Technology Review parte de uma visão utópica da internet como espaço de liberdades para pontuar os “erros” que fundaram as bolhas tóxicas de convivência online.
O pecado original da internet, diz ela, “foi a insistência na liberdade”. A epidemia de tristeza, solidão e maldade não estavam na perspectiva dos “homens brancos ricos da Califórnia” que criaram uma rede idealmente anticomercial para libertar a informação.
Construída na prática sob a égide da publicidade baseada em nossos dados pessoais, a internet estimula uma cultura da gratuidade que “permitiu e alimentou todos os piores dos piores tipos de coisas”. Algoritmos nos oferecem a anunciantes pela atenção que despertamos. E o “conteúdo divisivo” é o que mais nos atrai, como mostram inúmeros estudos e enfatiza Katie Notopoulos.
“Motivos que visavam o lucro levaram as plataformas a ignorarem abusos com muita frequência e também permitiram a disseminação de desinformação, o declínio das notícias locais, o aumento do hiperpartidarismo e formas totalmente novas de bullying e mau comportamento. Tudo isso é verdade, e mal arranha a superfície. Mas a Internet também proporcionou um refúgio para grupos marginalizados e um local de apoio, defesa e comunidade.
A escritora é, como denomina a si própria, ingenuamente otimista por manter a crença de uma internet mais útil, plural e alegre, “com mais dinheiro circulando para financiar mais coisas boas”. Os superlativos em excesso e com uma ponta de ironia na conclusão denotam o vigor do texto e a profundidade da análise. Vale ir mais fundo com a leitura do artigo.
Por que o preâmbulo? A campanha eleitoral deste ano subverteu expectativas da Justiça e reforçou métodos que exploram todos os requisitos da economia da atenção e cultuam os aspectos levantados pela escritora.
Aqui é Luciano Bitencourt, mergulhado nas análises pós-eleitorais com o propósito de entender o impacto da desinformação nos resultados. Terminado o primeiro turno, transcorrido sem incidentes significativos, eu e Daniela Germann mantemos o foco nos riscos para a Democracia.
Na nossa leitura crítica da semana, extraordinariamente publicado na terça-feira, levantamos pontos de atenção sobre violência eleitoral e polarização a partir de uma personagem que estremeceu o tabuleiro onde as peças políticas pareciam assentadas.
Desordem como campanha
Não dá para evitar o nome de Pablo Marçal quando se fala nas eleições deste ano. Tratado como fenômeno por ganhar a atenção dos eleitores e da mídia, o coach-candidato adotou estratégias de “marketing predatório”, na expressão de juristas, alcançou 28% dos votos dos paulistanos e não chegou ao segundo turno por pouco.
Desordem informacional foi sua premissa de campanha. Se considerarmos os critérios adotados pelas Nações Unidas para alertar sobre os riscos à integridade da informação atualmente, os procedimentos danosos estão todos evidenciados na corrida de Marçal para a prefeitura.
Como apontamos em nosso relato exploratório (acessível aqui), desinformação, informação falsa e discurso de ódio alimentam a violência e a polarização no cenário da comunicação política. E, para relembrar o conceito que adotamos, a desinformação é deliberadamente construída para fraudar e causar danos; a informação falsa resulta da disseminação ingênua de conteúdo enganoso; e o discurso de ódio usa informações até verdadeiras para promover agressões e comportamentos violentos.
Os três atributos estão presentes na campanha do coach-candidato.
O ápice da estratégia de desinformação foi a apresentação de um laudo falso alegando que um dos adversários é usuário de cocaína. Assinado por um médico já falecido, repleto de erros grosseiros, o documento foi postado nas mídias sociais de Marçal como prova de sua “denúncia”, feita desde o início da campanha.
É importante ressaltar que os canais oficiais de Pablo Marçal foram alvo da Justiça Eleitoral seguidas vezes, como resposta a postagens mentirosas, enganosas e fraudulentas. Portanto, a falsificação do laudo médico não foi um caso isolado. Processado, inclusive na esfera criminal, o coach-candidato usa um argumento de defesa também estratégico nesses casos.
“Quem emitiu é quem tem que falar, eu só publiquei. A minha parte é publicar, e eu não sei explicar como que a Meta derrubou em poucos segundos”.
Eis o segundo atributo, segundo as Nações Unidas, que vem desestabilizando a integridade da informação.
Desinformadores costumam se eximir da responsabilidade pelo que publicam porque entendem os riscos criminais dessas ações. Ao contrário do que se imagina, as ações nas redes sociais podem ter reflexo jurídico amparado pelo Código Penal. Neste caso, o coach-candidato derrotado se coloca como alguém ingênuo, inocente das acusações de fraude, cujo “compromisso” é publicar as “denúncias” que cabem em seus interesses.
No circuito da desinformação, os ingênuos, os que confirmam suas crenças por meio de conteúdos enganosos, os que republicam mensagens falsas sem intenção de prejudicar os outros, são esses que amplificam a circulação de um boato ou uma mentira e escondem sem se dar conta os responsáveis por fraudes e crimes contra terceiros. Se fazer passar por ingênuo também faz parte da estratégia de Marçal.
Por fim, o discurso de ódio esteve presente em muitos momentos da campanha do coach-candidato. Quando insinuou que mulher não vota em mulher, associou adversários a supostos crimes e interesses enviesados, promoveu o descrédito do sistema eleitoral, não são poucas as evidências.
Cabe um parêntese aqui: discursos de ódio não são apenas os que agridem explicitamente pessoas, grupos e instituições. Qualificar alguém pejorativamente, com a intenção de rotular e dar munição para seguidores mais agressivos é também uma forma de expressar violência.
Pablo Marçal foi vítima de uma cadeirada em debate transmitido pela TV após agredir verbalmente e fazer acusações distorcidas contra um de seus adversários. Pelo resultado das urnas, o “incidente” parece ter rendido votos. O coach-candidato foi motivo também de agressões físicas protagonizadas por assessores e correligionários. Os discursos violentos, muitos em tons de sarcasmo, foram característicos na estratégia de campanha.
O que mais chamou a atenção, contudo, foi a sofisticação no uso das mídias digitais, contornando todos os limites impostos pela Justiça Eleitoral. Nesse sentido, Marçal superou a Inteligência Artificial como ameaça às eleições.
Tensões no limite
Não é só por aqui. Nos Estados Unidos, enquanto especialistas alertam para as ameaças de IA durante a corrida presidencial, os eleitores estão mais preocupados com informações falsas promovidas por políticos. Os pesquisadores analisam que estamos entrando em uma era de “dúvida profunda”. Argumentam eles que não temos mais noção da realidade por conta da fabricação de imagens e conteúdos realistas que simulam fatos.
Mesmo que o impacto não seja visível no voto, o cenário é preocupante. Até agora, as intervenções no avanço dessas tecnologias não alcançaram a dimensão necessária. Por trás da era da “dúvida profunda” existe um modelo de negócios de “vigilância invasiva” que sustenta as big techs.
No campo da Inteligência Artificial, as grandes empresas de tecnologia controlam recursos, infraestrutura e investimentos, abrindo pouquíssimo espaço para projetos que não estejam em seu escopo. E, como também já mencionamos aqui, o lobby político tem freado as tentativas de regulação que procuram proteger direitos humanos diante da desordem informacional.
As incursões de Pablo Marçal sobre essa infraestrutura não chegaram a explorar o uso de IA, como temiam juristas e especialistas. Os casos que puderam ser verificados se enquadram nas mesmas estratégias de driblar as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral. Não foi a deepfake a vilã nesse processo. Na verdade, outros recursos mantidos pelas big techs, já bem conhecidos, é que forneceram subsídio para a desinformação.
Mesmo com as restrições impostas pela Justiça Eleitoral, entretanto, os processos judiciais resultantes da postura irresponsável do coach-candidato mostram que as tentativas de controlá-lo foram ao limite e podem ter se beneficiado do excesso de confiança na impunidade.
Sem a grave falsificação de um laudo médico, talvez o segundo turno em São Paulo fosse outro. E os riscos para a Democracia ainda maiores, visto que desinformação, informação falsa e discurso de ódio ganhariam outra escala de ameaças à integridade do sistema eleitoral.
Para ir mais fundo
AFP. “Eleitores dos EUA mais preocupados com políticos mentirosos do que com IA”. GZH, 4 de outubro de 2024, https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/noticia/2024/10/eleitores-dos-eua-mais-preocupados-com-politicos-mentirosos-do-que-com-ia-cm1utrzf0001g01esvddxb4uj.html.
Alfano, Bruno. “Secretária diz que médico nunca trabalhou em clínica citada por Marçal contra Boulos: ‘Aquela assinatura não é dele’; compare”. O Globo, 5 de outubro de 2024, https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/10/05/secretaria-diz-que-medico-nunca-trabalhou-em-clinica-citada-por-marcal-contra-boulos-aquela-assinatura-nao-e-dele-compare.ghtml.
Benton, Joshua. “You might discover a conspiracy theory on social media — but you’re more likely to believe it if you hear it from a friend”. Nieman Lab, 1º de outubro de 2024, https://www.niemanlab.org/2024/10/you-might-discover-a-conspiracy-theory-on-social-media-but-youre-more-likely-to-believe-it-if-you-hear-it-from-a-friend/.
Jardim, Lauro. “Post de Marçal é denunciado a STF e TSE por colocar em xeque integridade do processo eleitoral”. O Globo, 3 de outubro de 2024, https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2024/10/post-de-marcal-e-denunciado-a-stf-e-tse-por-colocar-em-xeque-integridade-do-processo-eleitoral.ghtml.
Kak, Amba, et al. “Não se engane — a IA é propriedade das grandes empresas de tecnologia”. MIT Technology Review – Brasil, 19 de janeiro de 2024, https://mittechreview.com.br/nao-se-engane-a-ia-e-propriedade-das-grandes-empresas-de-tecnologia/.
Landim, Raquel. “Ex-advogado de Marçal: não dá para tolerar fake news em véspera de eleição”. UOL, 5 de outubro de 2024, https://noticias.uol.com.br/colunas/raquel-landim/2024/10/05/ex-advogado-de-marcal-nao-da-para-tolerar-fake-news-em-vespera-de-eleicao.htm.
Lefèvre, Flávia. “Eleições 2024 revelam novos abusos digitais”. Time, 1º outubro de 2024, https://www.mobiletime.com.br/colunistas/01/10/2024/flavia-lefevre-eleicoes-2024/.
Lobato, Gisele. “TSE pode punir ‘big techs’ por monetizar cortes ilegais, indica Cármen Lúcia”. Aos Fatos, 1º de outubro de 2024, https://www.aosfatos.org/noticias/tse-big-techs-monetizacao-cortes/.
Muniz, Mariana. “Moraes determina intimação de Marçal para prestar esclarecimentos sobre publicações no X”. O Globo, 5 de outubro de 2024, https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/10/05/moraes-determina-intimacao-de-marcal-para-prestar-depoimento-sobre-publicacao-no-x.ghtml.
Notopoulos, Katie. “Como consertar a Internet”. MIT Technology Review – Brasil, MIT Technology Review, 17 de novembro de 2023, https://mittechreview.com.br/como-consertar-a-internet/.
Porto, Douglas, e Letícia Martins. “Campanhas de Boulos e Tabata vão à Justiça contra vídeo de Marçal pedindo dinheiro para apoiar candidatos a vereador”. CNN Brasil, 1º de outubro de 2024, https://www.cnnbrasil.com.br/eleicoes/campanhas-de-boulos-e-tabata-vao-a-justica-contra-video-de-marcal-pedindo-dinheiro-para-apoiar-candidatos-a-vereador/.
Redação. “Médico cuja ‘assinatura’ aparece em laudo falso já faleceu e não tinha especialização em psiquiatria”. Terra, 5 de outubro de 2024, https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/medico-cuja-assinatura-aparece-em-laudo-falso-ja-faleceu-e-nao-tinha-especializacao-em-psiquiatria,5c5bb89e82ded50da88fe482d30911f8yrh1loob.html.
Rudnitzki, Ethel. “Candidatos sinalizam uso de inteligência artificial em propagandas, mas não seguem padrão do TSE”. Aosfatos.org, 30 de setembro de 2024, https://www.aosfatos.org/noticias/candidatos-sinalizam-uso-de-inteligencia-artificial-em-propagandas-mas-nao-seguem-padrao-do-tse/.
Shores, Nicholas. “Filha de médico falecido pede inelegibilidade de Marçal por laudo falso”. VEJA, 6 de outubro de 2024, https://veja.abril.com.br/brasil/filha-de-medico-falecido-pede-inelegibilidade-de-marcal-por-laudo-falso/.
Tardaguila, Cristina. “🔥SP: O tamanho e o legado da ‘cadeirada’”. Ebulição, 3 de outubro de 2024, https://lupanewsletter.substack.com/p/sp-o-tamanho-e-o-legado-da-cadeirada.
Targino, Maria das Gracas. “É tempo do alvoroço das fake news”. Observatório da Imprensa, 3 de outubro de 2024, https://www.observatoriodaimprensa.com.br/informacao/e-tempo-do-alvoroco-das-fake-news/.
Tavares, Bruno. “Laudo apresentado por Pablo Marçal contra Boulos é falso, conclui perícia oficial”. G1, 5 de outubro de 2024, https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/eleicoes/2024/noticia/2024/10/05/assinatura-em-laudo-apresentado-por-pablo-marcal-e-falsa-conclui-pericia.ghtml.
No radar (com auxílio de IA)
- A Coalizão em Defesa do Jornalismo (CDJor) revelou um aumento alarmante de ataques à imprensa no TikTok durante as eleições de 2024, com 2.885 agressões registradas na última semana de setembro, um crescimento de mais de 400% em relação à semana anterior. O TikTok se tornou a plataforma mais utilizada para hostilizar jornalistas, superando o Instagram, que, apesar de ter 50 vezes mais contas monitoradas, contabilizou 967 ataques no mesmo período. Os ataques foram estimulados por incidentes na campanha eleitoral. A análise também revelou que a toxicidade das postagens no TikTok é significativamente maior do que em outras redes sociais, revelando um ambiente hostil para os profissionais de imprensa.
- Pesquisa do Intervozes também revelou que 66 candidaturas nas eleições de 2024 estão relacionadas a programas policialescos, refletindo uma crescente militarização da política brasileira. Esses candidatos, que incluem figuras ligadas às forças armadas e à segurança pública, buscam promover políticas de combate à criminalidade, mas levantam preocupações sobre a efetividade e as implicações sociais de suas propostas. O estudo destaca que essa tendência se alinha a uma retórica que prioriza a segurança em detrimento de questões sociais, aumentando a polarização no debate eleitoral. Há também a presença crescente de influenciadores ligados à segurança pública e programas policiais como candidatos. Esses candidatos, que utilizam plataformas digitais para promover suas agendas, refletem uma estratégia que prioriza a segurança em detrimento de questões sociais e políticas mais amplas. Muitos desses influenciadores aproveitam a desconfiança da população em relação às instituições tradicionais, promovendo uma narrativa de combate à criminalidade com soluções fáceis. Por fim, o estudo também identifica 46 candidaturas ligadas a proprietários de rádio e TV em 21 estados brasileiros nas eleições, evidenciando a influência da mídia na política nacional. Esses candidatos, que incluem figuras com forte destaque nas comunicações, buscam utilizar suas plataformas para promover interesses próprios e moldar a opinião pública. A análise aponta para um cenário preocupante de concentração de poder, onde a combinação de propriedade da mídia e de cargas públicas pode ameaçar a diversidade de vozes e comprometer a democracia.
Até semana que vem.