BOLETIM SEMANAL #30
Olá, pessoas.
Chegamos ao boletim de número 30 no momento em que o sistema de votação brasileiro fecha o segundo turno das eleições municipais. Não significa que o ciclo esteja encerrado porque a Justiça Eleitoral ainda tem atribuições para confirmar diplomação e posse de prefeitos e vereadores no próximo ano.
Ao longo de pouco mais de sete meses, a e-Comtextos se propôs a analisar o cenário da comunicação política em um momento histórico para as democracias ocidentais. Ainda não tínhamos presenciado tanta gente indo às urnas no mesmo ano: mais de 2 bilhões de eleitores em quase 80 países. Só no Brasil, quase 156 milhões.
Nossa perspectiva de análise parte da desinformação e seus impactos eleitorais. Nessa jornada de produção semanal, eu e Daniela Germann constatamos riscos e desafios ainda maiores para a Democracia. O resultado das eleições deve modelar conflitos mais profundos entre os poderes e ampliar a desconfiança nas instituições caso não haja regras claras e contundentes contra ilícitos e danos à integridade da informação e às ameaças ao diálogo e à participação política.
Eu sou Luciano Bitencourt com mais um boletim Desinformação em Pauta, a partir desta edição também disponível para assinatura gratuita no Substack. É só cadastrar um e-mail válido.
Portanto, nossas análises sobre como encontrar filtros de confiança na Democracia e romper com os efeitos da desinformação passam a estar disponíveis no LinkedIn, no Substack, e no site do Observatório Desordem Informacional em Pauta.
Estamos ampliando as possibilidades de debate e interação com o intuito de promover conexões que nos ajudem a compreender ainda mais o fenômeno da desinformação e de compartilhar conteúdo inspirado em nossa jornada de produção.
Vamos à leitura crítica da semana.
Fatores de risco
Mark Coeckelbergh, filósofo belga, trouxe argumentos interessantes à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), realizada entre 09 e 13 de outubro no município do litoral sul do Rio de Janeiro. A Inteligência Artificial tende a minar o sistema democrático quando usada para vigilância e opressão ou para induzir vieses e perpetuar discriminação.
A Democracia, enfatiza ele, necessita de especialistas e de cidadãos com conhecimento para superar o sistema populista. E a desinformação é um obstáculo para se alcançar os princípios que o filósofo defende.
“O ideal de democracia que eu defendo no meu livro [“Why AI undermines democracy and what to do about it” (na tradução livre: Por que a IA ameaça a democracia e o que fazer a respeito)] é aquele em que as pessoas ouvem umas às outras, discutem sobre o bem comum, e onde as pessoas realmente participam da tomada de decisões, não apenas votam. Isso só funciona se houver uma base de conhecimento”.
Vimos que as ameaças do uso de IA nas eleições deste ano não se confirmaram como se esperava. Reiteramos isso algumas vezes aqui. Mas a ponderação de Coeckelbergh nos diz que há mais riscos ao sistema democrático em sentido amplo do que estritamente ao voto.
Populismo digital e comunicação política, avaliamos em nosso relato exploratório (acessível aqui), estão se alimentando de um tipo de conflito no qual opiniões e crenças infundadas têm mais valor do que fatos e evidências. Muito desse dilema está amparado no investimento das grandes empresas de tecnologia em uma economia que lucra com a atenção dirigida por algoritmos ao sensacionalismo, à simplificação e à desinformação.
Tinha-se em mente que influenciadores sintéticos, criados com recursos de Inteligência Artificial, e a produção de deepfakes, usando pessoas vivas ou mortas para inventar situações e explorar narrativas falsas, serviriam para confundir eleitores e persuadir o voto. Contudo, parte significativa dos poucos exemplos ocorridos no Brasil mostra que as efetivas ameaças dessas ferramentas não estão exclusivamente no campo eleitoral.
Diálogo político, discussão sobre o bem comum, participação e representação política, para usar as expressões do filósofo Coeckelbergh, é que estão sob ameaça.
Presenciamos estratégias de campanha bastante inusitadas. Em São Paulo, o coach-candidato Pablo Marçal levou ao extremo os limites entre as regras eleitorais estabelecidas e o ilícito nas ações de campanha ao remunerar seguidores para editar e viralizar seus vídeos, entre outras irregularidades não previstas pela Justiça Eleitoral.
O mesmo se pode ver nos Estados Unidos, onde Elon Musk promove doações milionárias para o engajamento de eleitores em petições sobre o direito à liberdade de expressão e ao porte de armas. Os juristas se dividem na interpretação do que é ilícito nesta iniciativa.
É irônico, mas não surpreendente, que, no ano histórico em que a representação popular inédita escolhe seus representantes em diferentes níveis e lugares, os eleitores estejam mais polarizados e suscetíveis a decisões influenciadas por desinformação e estratégias que tensionam as leis e os direitos.
O resultado das eleições municipais traz indícios de que o Legislativo brasileiro não deve avançar na regulação das tecnologias generativas e das redes sociais. Para a Justiça Eleitoral, um cenário de dificuldades se amplifica diante da necessidade de impor ainda mais limites para manter a integridade do processo eleitoral em 2026.
Descrédito e desconfiança
Temos defendido, com base no argumento de especialistas, que é preciso cuidado no uso do termo fake news. Entre os políticos, “notícias falsas” se encaixam facilmente em quaisquer argumentos que contradigam seus discursos. Opiniões e crenças infundadas têm sido usadas para popularizar uma concepção que nada tem a ver com notícia ou conteúdo sustentado por evidências.
A repórter do ‘desinformante’, Liz Nóbrega, relembra, ainda que não haja consensos, a importância de compreendermos o fenômeno em suas diferentes nuances. É quando a falsidade é disseminada com a intenção de dolo que a desinformação ganha sentido. É a fraude e o dano como intenção que materializam o circuito desinformativo. Mas, o requinte é maior agora.
“Se antes a gente precisava de um ser humano para criar um texto e pensar numa narrativa, agora você pode pedir para um chatbot criar uma matéria que emula o jornalismo de uma forma muito rápida com um prompt e, em questão de segundos, você tem uma matéria que traz informações falsas sobre vários temas”.
O descrédito nas instituições jornalísticas, a propósito, não decorre apenas da emulação atribuída pela repórter. É um fator importante, sem dúvida, mas a queda sucessiva e recorrente de confiança na produção jornalística diz respeito também a questões relativas à indústria da informação, ao consumo intenso de conteúdo de todo o tipo, à percepção de que jornalistas promovem determinadas agendas políticas ou visam lucros comerciais, entre outros aspectos.
Falta conhecimento público sobre como se produz informação de qualidade, especialmente notícias. Sempre há escolhas a serem feitas quando se elabora narrativas com base em fatos. A questão é como os critérios para essas escolhas são expostos. E o Jornalismo tende a não tratar disso em suas produções.
Temos percebido que a retórica política e a violência eleitoral estão legitimando um tipo de campanha que induz à incivilidade. E mesmo veículos de imprensa, cujo compromisso com os fatos e a verificação de falsidades são princípios inegociáveis, têm dado espaço para discursos políticos agressivos e enviesados, acusações infundadas e mentiras reproduzidas sem que sejam desmascaradas.
Pesquisa recente sobre a relação entre “Influenciadores, Jovens e Política na América Latina”, realizada pelas pesquisadoras Camila Rocha, Esther Solano e Thais Pavez em parceria com a equipe do InternetLab, traz insights importantes para avaliarmos o futuro da participação e da representação política e do circuito da desinformação.
As redes sociais são simultaneamente uma fonte de entretenimento e um espaço para o acesso ao debate político, tendo informações e notícias como fonte, para cerca de um quarto dos jovens entre 16 e 24 anos entrevistados. Como não há intermediários nesse ambiente, a sensação de autenticidade e proximidade é usada por políticos para promover engajamento, nos moldes dos influenciadores digitais.
No Brasil, contudo, a “fadiga política” entre os jovens é uma característica incomum em outros países onde foram ouvidos. Por um lado, o medo da violência e a polarização entre “bolsonaristas” e “lulistas” são motivo para que eles evitem discussões políticas. Por outro, influenciadores populares moldam o discurso desses jovens com ideais conservadores e focados no empreendedorismo, diz o levantamento.
Em um cenário como este, por mais que a Justiça Eleitoral se esforce para garantir a integridade do processo de votação, o cansaço, a violência e estratégias predatórias do marketing no âmbito político engrossam uma crise com raízes no descrédito e na desconfiança. Seja na importância de escolhas eleitorais quantificadas por maioria quanto na representatividade de políticos em decisões que expressem desejos sociais.
No radar (com auxílio de IA)
- De acordo com estudo da Kantar, o antigo Twitter enfrenta um cenário de fuga de anunciantes na América Latina, com 31,9% dos profissionais de marketing planejando reduzir os investimentos devido à falta de previsibilidade e segurança na rede social. Entre os fatores apontados estão problemas de transparência, quedas na confiança e receios quanto à exposição de marcas junto a conteúdos de ódio e criminosos. Além disso, o ex-Twitter perde espaço para plataformas como Google, Instagram e YouTube, preferidas pelos anunciantes na região.
- No Brasil, o governo convocou representantes do antigo Twitter para esclarecer mudanças nos termos de uso da plataforma, especialmente em relação à transparência e proteção de dados dos usuários. A convocação reflete preocupações do Ministério da Justiça sobre possíveis impactos das novas diretrizes na privacidade e nos direitos dos usuários.
- A Microsoft alertou que Rússia, China e Irã intensificaram campanhas de desinformação visando as eleições nos EUA. As operações, focadas em criar dúvidas sobre a integridade do processo eleitoral, incluem ataques direcionados e uso de deepfakes para minar a confiança pública. O relatório do Microsoft Threat Analysis Center destaca a evolução das técnicas usadas por esses países e o aumento da disseminação de conteúdo manipulado próximo ao dia da eleição, advertindo sobre o risco de impactos na percepção pública e instabilidade pós-eleitoral.
- O uso de chatbots de IA para mediação de conflitos tem avançado, possibilitando que esses sistemas auxiliem em diálogos e resolução de conflitos, promovendo consenso em questões sociais complexas. A tecnologia, testada pelo Google DeepMind, pode ajudar na conciliação ao identificar pontos de concordância. No entanto, os conselhos oferecidos ainda são limitados e genéricos, e o risco de validar vieses é alto, evidenciando que a IA não substitui o diálogo humano.
Para ir mais fundo
Barbosa, João; Lobato, Gisele. “Na eleição, IA criou confissões falsas e até ‘ressuscitou’ padrinhos políticos”. Aos Fatos , 21 de outubro de 2024, https://www.aosfatos.org/noticias/acoes-inteligencia-artificial-justica-eleitoral/.
Borges, Ester. “Influenciadores, Redes Sociais e Política: a perspectiva dos jovens latino-americanos”. InternetLab , 10 de outubro de 2024, https://internetlab.org.br/pt/noticias/influenciadores-redes-sociais-e-politica-a-perspectiva-dos-jovens-latino-americanos/.
Costa, Ana Gabriela. “IA é uma ferramenta poderosa para manipulação de votos, alerta o filósofo Mark Coeckelbergh”. Terra , 11 de outubro de 2024, https://www.terra.com.br/byte/ia-e-uma-ferramenta-poderosa-para-manipulacao-de-votos-alerta-filosofo-mark-coeckelbergh.
do Valle, Vinícius. “O Que o Fenômeno Pablo Marçal Ensina Sobre o Novo Cenário Político Brasileiro”. A Conversa , outubro de 2024, http://theconversation.com/o-que-o-fenomeno-pablo-marcal-ensina-sobre-o-novo-cenario-politico-brasileiro-242093.
Freitas, Ramylle. “Congresso online: o impacto da Inteligência Artificial no cenário eleitoral de 2024”. Org.br , 22 de outubro de 2024, https://abraji.org.br/noticias/congresso-online-o-impacto-da-inteligencia-artificial-no-cenario-eleitoral-de-2024.
Gurgel, Luciana. “Americanos estão cada vez mais desconfiados das notícias sobre as eleições presidenciais, diz pesquisa”. MediaTalks UOL, 18 de outubro de 2024, https://mediatalks.uol.com.br/2024/10/18/desinformacao-eleitoral-pesquisa-mostra-eleitores-dos-eua-confusos-com-noticias/.
Jones, Tom. “How much coverage of Trump is too much?” Poynter (Opinião), 21 de outubro de 2024, https://mailchi.mp/poynter/how-much-coverage-of-trump-is-too-much?e=a4bebadfbc.
Jones, Tom. “Two TV news programs edited videos of the presidential candidates. Was it deceptive?” Poynter (Opinião), 22 de outubro de 2024, https://mailchi.mp/poynter/clips-of-harris-and-trump-were-edited-was-it-deceptive?e=a4bebadfbc.
Lucena, Marina. “TSE, desinformação e abuso de poder econômico nas propagandas eleitorais”. JOTA Jornalismo, 22 de outubro de 2024, https://www.jota.info/artigos/tse-desinformacao-e-abuso-de-poder-economico-nas-propagandas-eleitorais.
Peron, Isadora. “Campanha de Pablo Marçal pode levar TSE a avaliar regras eleitorais”. Valor Econômico, 21 de outubro de 2024, https://valor.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/10/21/campanha-de-marcal-pode-levar-tse-a-avaliar-regras-eleitorais.ghtml.
Redação. “Grupo de Economia Digital do G20 alcança consenso inédito sobre promoção da integridade da informação e combate à desinformação”. Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, 21 de setembro de 2024, https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2024/09/grupo-de-economia-digital-do-g20-alcanca-consenso-inedito-sobre-promocao-da-integridade-da-informacao-e-combate-a-desinformacao.
Redação. “Integridade da informação passa por direitos humanos, transparência, educação e responsabilização, diz diretor de Comunicação e Informação da UNESCO”. Instituto Palavra Aberta, 18 de outubro de 2024, https://www.palavraaberta.org.br/entrevista/integridade-da-informacao-passa-por-direitos-humanos-transparencia-educacao-e-responsabilizacao-diz-diretor-de-comunicacao-e-informacao-da-unesco.
Redação. “Promoção da integridade da informação ganha espaço na agenda global”. Instituto Palavra Aberta, 26 de setembro de 2024, https://www.palavraaberta.org.br/artigo/promocao-da-integridade-da-informacao-ganha-espaco-na-agenda-global.
Suárez, Eduardo. “Why Millions of Americans Avoid the News – and What It Means for the US Election”. Reuters Institute for the Study of Journalism, https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/news/why-millions-americans-avoid-news-and-what-it-means-us-election.
Vargas, Eduardo. “Elon Musk testa limite de lei eleitoral com sorteio de US$ 1 milhão”. IstoÉ Dinheiro, 21 de outubro de 2024, https://istoedinheiro.com.br/elon-musk-testa-limite-de-lei-eleitoral-com-sorteio-de-us-1-milhao/.
Até semana que vem.