Fantasia, omissões e violência no encalço da Democracia [#31]

Imagem criada com Inteligência Artificial – Freepik

Pessoas, tudo bem?

Nosso boletim semanal está de cara nova. Na semana passada, o levamos ao Substack e mantivemos a estrutura básica de análise a respeito dos efeitos da desinformação em processos eleitorais.

Com o fim das eleições no Brasil, resolvemos, eu e Daniela Germann, estruturar a newsletter Desinformação em Pauta como organizamos nosso trabalho de curadoria digital na e-Comtextos.

Gostamos de explorar dados, fatos e versões sobre assuntos que nos ajudam a perceber aspectos relevantes na descrição de cenários e no apontamento de tendências.

Elencamos, a partir daí, probabilidades e rastreamos indícios, evidências, análises, argumentos relevantes, todo o tipo de subsídio que encontrarmos para dar sentido à exploração que fazemos.

É um exercício de atualização e leitura crítica, uma espécie de fichamento sobre o que destacar nos relatos mais aprofundados e analíticos que oferecemos em nossa jornada de produção, seja para clientes interessados em compreender o cenário onde atuam, seja aberta ao público como no caso deste boletim.

Não deixa de ser uma forma de mostrar o que fazemos e como trabalhamos, mas o intuito principal aqui é trazer informação qualificada para provocar reflexões, pautar decisões e orientar ações futuras sobre como se portar diante da desordem informacional e seus efeitos na Democracia.

Eu sou Luciano Bitencourt e apresento a face mais recente de nossa newsletter. Por mais singela que seja, é nossa forma de contribuir para o enfrentamento ao fenômeno da desinformação.

Fantasias de conspiração são a experiência do maravilhoso no mundo onde a maravilha está em falta.

Paolo Demuru, professor e pesquisador italiano radicado no Brasil, faz uma provocação interessante em entrevista concedida à BBC [1]. Não há teoria por trás de narrativas conspiratórias, mas fantasia. Isso implica, segundo ele, a importância de revelar os “mistérios” por trás de falsidades, não só as refutar com argumentos racionais.

Em nossas apurações para o relato exploratório “Desinformação em Eleições”, chegamos a levantar algumas das estratégias no enfrentamento a informações falsas com intenção de dolo [2]. Na avaliação de Demuru, “quem luta contra a desinformação extrema, precisa ter sonho” e evitar o quanto possível o discurso de uma “supremacia racional”. Ainda não tínhamos explorado essa perspectiva.

Vale pensar nisso diante do que presenciamos nas eleições deste ano, não só no Brasil. A corrida presidencial nos Estados Unidos, a propósito, traz muitas evidências do que nos espera em 2026. Algumas delas experimentamos já no pleito municipal encerrado no final do mês passado.

Assim como o uso de Inteligência Artificial não exerceu tanta influência quanto se esperava, o volume de pedidos de checagem para conteúdo desinformativo não correspondeu às expectativas das organizações que se prepararam para refutar alegações falsas e enganosas durante a campanha eleitoral no Brasil [3].

Ficaram evidentes, entretanto, as “fantasias” sobre fraude eleitoral. Elas dominaram o circuito de desinformação. Por aqui, a urna eletrônica e a atuação da Justiça puxaram o coro contra supostas irregularidades no sistema de votação. Nos Estados Unidos, sobram argumentos falsos sobre a manipulação dos resultados antes mesmo do término do processo eleitoral [4],[5] e [6].

Todas as narrativas levam em conta um “núcleo de verdade”, na expressão do professor Demuru. As “fantasias” se sustentam, por exemplo, em exceções que justificam uma generalização infundada e põem em xeque a credibilidade do “sistema” visto como manipulador, contra o “povo” representado por políticos outsiders e extremistas.

Amparando essas distorções, as grandes empresas de tecnologia impulsionam, monetizam e lucram com as “fantasias de conspiração”. Usuários do falecido Twitter dizem estar faturando “milhares de dólares” com as mudanças nas políticas de moderação implementadas pela plataforma. E isso inclui a disseminação de conteúdos enganosos sobre as eleições estadunidenses [7].

Entidades que monitoram e regulam a influência digital das plataformas reconhecem que as empresas têm se esforçado para criar processos mais eficientes de moderação de conteúdo, especialmente em momentos excepcionais como o de eleições. Mas, além de insuficientes, as respostas tendem a repetir fórmulas inadequadas, reforçar o modelo de negócios e reduzir custos no enfrentamento à desinformação [8], [9] e [10].

Tem bastante caroço nesse angu cada vez mais indigesto.

Nunca ficou tão claro que a propriedade da mídia importa para a democracia.

O dilema descrito pela editora do Guardian US, Betsy Reed, não é novo, mas foi atualizado depois que o The Washington Post e o Los Angeles Times decidiram não “endossar” uma das candidaturas nas eleições presidenciais dos Estados Unidos [11]. Por lá, é tradicional nos grandes jornais a manifestação de apoio a um dos postulantes à Casa Branca.

Essa decisão espanou a poeira sob o tapete das salas onde a informação de qualidade é tratada como commodity [12]. Só o The Post perdeu cerca de 250 mil assinantes e um corpo de jornalistas experientes quase que imediatamente. As reações evidenciam um cenário em que, para parte significativa dos críticos, a “neutralidade” é uma escolha pela incivilidade e pela desinformação [13] e [14].

Está nas entrelinhas a relação entre bilionários que incluíram a mídia em seu portfólio de investimentos e o oportunismo de não contrariar figuras influentes que possam prejudicar os negócios. Jeff Bezos, fundador da Amazon e dono do The Washington Post, argumentou em artigo no próprio jornal que preferiu se posicionar em favor do público que vê com desconfiança uma imprensa “passional”.

Não endossar um candidato é, no entendimento de Bezos e do dividido conselho editorial do The Post, um jeito de recuperar a confiança de leitores que “veem a mídia como tendenciosa” [15]. Há, aqui também, um “núcleo de verdade” sobre o qual se pode sustentar o argumento. O problema é que as razões do descrédito na mídia não são tão simples e não se resumem às escolhas editoriais de Bezos.

O atual sistema de mídia é muito mais complexo e diversificado, tem no enfrentamento à desinformação seu principal desafio e na identidade de seus proprietários e investidores um importante indicador de proximidade com círculos de poder mais democráticos ou mais autocráticos.

É bem provável que a Democracia perca com omissões como a promovida por Jeff Bezos. Ele e outros bilionários que viram no setor de mídia uma oportunidade de negócio lucram de diferentes formas, explorando uma crise que só beneficia a desinformação [16].

Entre junho e o dia da conclusão do segundo turno das eleições brasileiras, em 27 de outubro, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) recebeu 5.234 notificações no Sistema de Alerta de Desinformação Eleitoral (Siade) e 3.463 ocorrências de desinformação no disque-denúncia, o SOS Voto [17].

Os números mostram que o esforço de preservar a integridade eleitoral foi, no mínimo, monitorado com sucesso por aqui. Polícias estaduais, Polícia Federal e Ministério Público receberam a incumbência de averiguar e analisar a necessidade de eventuais medidas no caso de confirmação das denúncias.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte (equivalente ao nosso STF) também se prepara para uma nova onda de processos judiciais contestando o resultado das eleições se Trump não vencer [18]. Pelo sistema eleitoral estadunidense, as denúncias de irregularidade são tratadas pelos tribunais estaduais e vão à Suprema Corte apenas em casos excepcionais.

Com a disputa acirrada entre Kamala Harris e Donald Trump, o judiciário espera um volume consideravelmente maior de denúncias neste ano. Uma ala dos Republicanos está chancelando as declarações de Trump, que só vê derrota no caso de fraude eleitoral [19]. O partido Democrata já definiu estratégias para enfrentar os discursos de antecipação dos resultados dando vitória a Trump sem a confirmação da contagem de votos [20].

As ameaças a quem trabalha em empresas envolvidas com o sistema de votação cresceram em 80% nos últimos dois anos e a violência política não está restrita ao mundo online [21]. O uso de força física e de armas também aumentou por lá [22]. Não por acaso, as medidas preventivas para dar credibilidade ao resultado das eleições incluem ações contra a possibilidade de uma nova invasão ao Capitólio, como em 2020.

Relatório que aponta o estado global das democracias traz dados relevantes para se avaliar o quadro atual e sustenta que as democracias ocidentais continuam em risco. Os esforços para defender princípios democráticos incluem, segundo o documento, investimentos em Jornalismo investigativo e independente, instrumentos de participação para engajar a sociedade civil e a valorização de entidades não governamentais no processo [23] e [24].

Fantasias conspiratórias, endosso na desinformação e violência política são farinha do mesmo saco, para usar a expressão popular que imputa a mesma origem a coisas ruins.


Os textos que aprofundam a leitura crítica apresentada aqui e oferecem mais informações podem estar em língua estrangeira, dependendo da fonte acessada.

Para ler boletins anteriores, clique aqui.

Em nosso site tem mais informações a respeito do trabalho que fazemos para pautar decisões e orientar ações futuras.

Deixe um comentário