Ampliar o alcance da veracidade é um exercício analógico de escolhas [#33]

Imagem criada com Inteligência Artificial – Freepik

Olá, pessoas.

Em um de nossos boletins [1], trouxemos uma reflexão sobre os efeitos de a liberdade de expressão ser regulada pelos limites de seu alcance.

Por princípio, dizíamos eu e Daniela Germann com base em um estudo sobre modelos de financiamento da desinformação [2], que orientar os algoritmos de recomendação para valorizar a civilidade nas redes e desmonetizar conteúdos ofensivos poderiam garantir a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, limitar o alcance digital de mentiras e falsidades criadas para gerar danos.

Não se consegue isso, o estudo deixou claro, sem o compromisso e a responsabilização das big techs.

Aqui é Luciano Bitencourt, trazendo agora outro ponto relevante para este debate: tão necessário quanto reduzir o impacto de informações enganosas e discursos ofensivos por meio da regulação é ampliar o alcance da veracidade.

Vamos à leitura crítica da semana.

A língua inglesa tem uma palavra que pode ser usada como substantivo e como verbo para caracterizar “besteiras”, “bobagens”, “mentiras”, com o intuito de “persuadir alguém a acreditar”, dar veracidade a algo enganoso: “bullshit”.

Em estudos sobre desinformação, esse termo aparece até com certa frequência. Há quem considere que os consumidores de informação estão mais tolerantes com a publicação de “besteiras” e “bobagens”.

Dois argumentos refletem bem esse cenário.

Não bastam os esforços de romper com o circuito da desinformação pela intervenção das instituições porque falta vontade social em direção à verdade.

E a paciência está sendo destruída pela influência da velocidade digital em práticas contemplativas, como a leitura de material escrito mais denso e a audiência de filmes longos [3].

No fundo, se tenta compreender a perda da influência da grande mídia informativa sobre as decisões que estão nos afetando [4]. A eleição de Donald Trump, por exemplo, parece sugerir que gurus da mídia digital, streamers independentes e especialistas em usar a liberdade de expressão para alavancar tecnologias foram úteis à campanha e serão ainda mais úteis nas estratégias de governo [5].

Trump alcançou o eleitorado jovem nos Estados Unidos com um discurso de sucesso empresarial e de empreendedorismo em canais hiper direcionados e muito distantes do trabalho jornalístico tradicional [6]. Algo semelhante, em escala menor, foi testado com alguma eficácia na campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo, se todos ainda lembram.

Narrativas fragmentadas, tiradas de contexto e usadas para persuadir dão fôlego à desinformação. A pauta desse debate é também sobre nosso futuro porque narrativas fragmentadas levam ao descrédito os princípios de veracidade que sustentam a realidade. E os meios por onde se poderia construir essa unidade também estão fragmentados.

Guardiã da veracidade, a chamada imprensa tradicional, ainda que tenha atuado contra si mesma em alguns aspectos, está em desvantagem nesse cenário [7] [8] [9]. Fragmentos do que ela publica, com custos relativamente altos, são usados gratuitamente por quem não segue padrões de precisão e responsabilidade para recortar opiniões, declarações descontextualizadas e dados enviesados com o objetivo de distorcer os fatos.

Estudo recente mostra que a disseminação da desinformação se equipara a como os vírus se propagam. É possível, portanto, usar modelos matemáticos oriundos da epidemiologia para elaborar intervenções e formas de imunizar as pessoas contra conteúdos fraudulentos [10].

Pesquisadores avaliam que introduzir informações falsas previamente para refutá-las em seguida pode servir como vacina contra a desinformação. A “inoculação psicológica”, como é conhecida, já tem sido aplicada em ações de educação midiática.

Existem, contudo, outras nuances que merecem atenção no circuito desinformativo. Os dados das plataformas de mídia social, por exemplo, estão mais restritos aos proprietários das empresas de tecnologia, o que dificulta auditorias especializadas no rastro de informações enganosas e conteúdos fraudulentos [11].

Para fugir da regulação imposta pela União Europeia, o Google vai remover das pesquisas online as notícias produzidas pela imprensa da região. É mais uma medida para contrapor o argumento de que a produção de notícias deveria ser monetizada quando recomendada pelo algoritmo da big tech [12].

Consequência das eleições nos Estados Unidos e da participação direta de Elon Musk na campanha e no governo de Donald Trump, o falecido Twitter virou desafeto de veículos jornalísticos [13] [14] [15] e tem perdido espaço para um concorrente ainda desconhecido, o BlueSky [16] [17]. A guerra cultural está moldando também os negócios de mídia.

Veículos tradicionais de imprensa não tiveram tanto tráfego nos dias decisivos das eleições estadunidenses, quanto no mesmo período em 2020 [18] [19]. As análises propõem duas conclusões: há quatro anos, a vitória de Joe Biden levou muito mais tempo para ser confirmada e foi contestada à exaustão por Trump, o que estimulou o público a acompanhar veículos confiáveis para saber o resultado; por outro lado, o volume de pessoas evitando notícias cresceu muito de lá para cá, o que pode ter influenciado a queda de interesse por informação eleitoral [20].

São vários os indicadores de fragmentação excessiva no consumo de informação. Os vieses de abordagem, ancoragem de argumentos e escolhas editoriais estão minando inclusive o campo da produção de notícia e restringindo o alcance da veracidade como parâmetro qualitativo contra a desinformação.

É bem provável que já estejamos infectados demais para uma “inoculação psicológica” eficaz.

Diante das infinitas opções que a internet nos oferece, escolher no que prestar atenção, consumir e criar faz toda a diferença. O jornalista Kyle Chayka oferece um contraponto relevante à recomendação algorítmica das plataformas digitais [21].

A repetição impulsionada pela escalabilidade é inimiga do gosto porque a mesmice captura nossas escolhas. Pode ser relevante reter o que nos apaixona para evitar a usurpação do que gostamos de gostar.

Esse é um dilema típico das relações digitais estimuladas pelas mídias controladas por algoritmos. E cabe muito bem para a produção de informação qualificada, na medida em que estamos carentes de fiadores humanos para dar sentido à realidade por meio de narrativas baseadas em fatos [22].

O trabalho de escanear o que é relevante guarda uma certa privacidade, um exercício de atenção mais exclusivo, desacelerado e focado em escolhas que permitam qualificar as interpretações no ritmo da percepção humana. Nem tudo talvez mereça ser publicizado e nem tudo é escala.

O alcance da veracidade como antídoto para a desinformação não cabe em “inoculações psicológicas” contra disseminações virais. Soma-se a elas como reforço mais lento e analógico de escolhas pela civilidade e por conteúdos que realmente superem a tolerância às “bullshits” no consumo por informação.


Os links que aprofundam a leitura crítica apresentada aqui e oferecem mais informações podem estar em língua estrangeira, dependendo da fonte acessada.

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