Ilusão de consensos, realidades sob medida e a crise da informação [#34]

Recorte da capa da edição de domingo (24/11) do jornal espanhol El País

Olá, pessoas. Aqui é Luciano Bitencourt, induzido a iniciar o boletim destacando a edição do jornal espanhol El País deste domingo (23/11).

Um grande desafio para as democracias: a era da desinformação traz a manchete de primeira página.

Em síntese, reportagem e artigos complementares abordam a polarização e a desorientação social resultantes dos relatos alternativos e das farsas disseminadas em larga escala, a distorção dos fatos como “nova normalidade” e o crescimento da indústria da mentira impulsionada por redes de influenciadores em busca de dinheiro e das elites em busca de poder [1] [2] [3] [4].

As bases da produção jornalística do El País são a eleição de Donald Trump e as enchentes de semanas atrás em Valência. Dois eventos recentes, turbinados por falsas alegações e uma certa complacência da sociedade com mentiras prejudiciais ao processo eleitoral nos Estados Unidos e à ajuda humanitária na Espanha.

Eu e Daniela Germann, em nossas apurações, chegamos a trazer dados e referências sobre alguns desses aspectos durante a tragédia climática no Rio Grande do Sul no início do ano e as eleições municipais aqui no Brasil [5] [6] [7] [8].

Queremos enfatizar um detalhe, se é que podemos chamar assim, levantado pela pesquisadora Renée DiResta, da Universidade de Georgetown, citada na reportagem do El País:

“A colisão entre a máquina de propaganda e a fábrica de rumores criou uma epistemologia de ‘escolha sua própria aventura’: algum veículo já escreveu a história que você quer acreditar; algum influenciador está demonizando o grupo que você odeia“.

É sobre essa realidade feita sob medida e a ilusão de que todos concordamos com ela que debruçamos nossa leitura crítica da semana.

Insinuações de fraude são usadas para insuflar o extremismo político e desacreditar as instituições responsáveis por processos eleitorais há anos na absoluta maioria dos países democráticos. O recente indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, militares e membros do governo derrotado em 2022 nas urnas traz novas facetas sobre o impacto dessa estratégia [9].

No caso brasileiro, não se tratava apenas de uma tentativa de manipular eleitores e apoiadores. Os indícios apontados pela Polícia Federal levam a crer que as falsas alegações de fraude eleitoral tinham como propósito justificar ações para reverter o resultado das eleições e fazer de Bolsonaro vencedor a qualquer custo [10]. Em bom português, subsidiavam um golpe de Estado [11].

Dias antes, um atentado ao Supremo Tribunal Federal sugeria que os atos antidemocráticos de 8 de janeiro do ano passado estão mais encravados no extremismo político do que se supunha. Para a Polícia Federal, está tudo interligado. Mas, como é característico na “era da desinformação”, influenciadores digitais e elites partidárias alimentam a indústria da mentira para confundir e gerar desconfiança [12].

Não é uma questão de crença, é bom esclarecer. A tentativa de golpe no Brasil é tratada ainda como hipótese baseada em indícios e delações, tem um longo caminho judicial a percorrer se for confirmada pela Procuradoria Geral da República e nem todos os indiciados podem virar réus. As alegações mentirosas sobre fraude eleitoral, contudo, continuam influenciando o extremismo com a complacência de parte da sociedade.

A ilusão de consenso é alimentada nesse cenário com táticas rotineiras no circuito da desinformação. Perfis falsos e robôs simulando engajamento se somam à criação de sites e perfis que imitam meios de comunicação legítimos, ferramentas que alteram vídeos, imagens e áudios, além de algoritmos que priorizam a polarização e o sensacionalismo, especialmente em aplicativos de mensagem, onde não há políticas de moderação de conteúdo [13].

O problema é que essas táticas não são as únicas e, talvez, nem as mais impactantes no circuito de desinformação.

Falsificação nem sempre está associada a dolo ou dano. Como mostra uma exposição organizada pela Blinken Open Society Archives em Budapeste, documentos adulterados salvaram vidas durante o domínio nazista. “Fake or Real” reúne mais de cem artefatos históricos para mostrar como a arte de enganar nos influencia [14], para o bem e para o mal.

Partindo da prática da “condenação da memória” para apagar rastros da História, a mostra promove reflexões sobre o que é um “fato” e porque a desinformação persiste. Estudos recentes nos dizem que, mesmo antes dos algoritmos, as redes já eram tóxicas e usavam mentiras e falsidades para confirmar crenças comuns. Mas, é preciso reconhecer, existem estratégias mais profundas nesse circuito.

Levantamento realizado pelo Observatório Latino-Americano de Regulação de Meios e Convergência (Observacom), por exemplo, aponta que governos latino americanos têm usado a publicidade oficial para controlar os meios de informação [15]. Interesses políticos acabam determinando o destino de verbas públicas em publicidade institucional por falta de marcos regulatórios e mecanismos de transparência.

Os efeitos por trás desse tipo de prática são tão contundentes quanto espalhar mentiras e falsidades para manipular. Além de reduzir a diversidade de veículos e a abrangência de cobertura sobre fatos de interesse público, silencia vozes dissonantes e cria nichos de apoiadores que transformam informação em propaganda [16].

No Brasil, o marco regulatório de publicidade institucional é avançado, segundo o estudo, mas não há ainda repostas eficientes à necessidade de transparência nem formas de coibir investimentos públicos em veículos que desinformam.

Outro indicador importante nesse cenário são as leis de acesso à informação, que perdem força à medida que, nos lugares onde elas existem, os governos criam dificuldades para responder a solicitações dentro dos prazos e diminuem a estrutura estatal para atendê-las. Nos Estados Unidos, a tendência é que o governo Trump intensifique ainda mais as deficiências já evidenciadas no período de Joe Biden [17].

Ataques à imprensa contrária à propaganda governamental em países autocráticos também estão na lista dos fatores que aprofundam a crise da informação. A questão é que essa prática se estende a países considerados democráticos, seja com governos extremistas ou excessivamente preocupados em criminalizar “notícias falsas”. É o que temem, por exemplo, jornalistas experientes nos Estados Unidos e se tem confirmado na Argentina de Javier Milei [18] [19].

É bem provável, nesse cenário, que os debates regulatórios sobre “notícias falsas”, inclusive os realizados no Brasil, continuem invisibilizando outros recursos poderosos no circuito da desinformação, como os que destacamos.

A pesquisadora Kate Starbird, da Universidade de Washington, alerta para o óbvio na reportagem do El País:

“A desinformação não é uma peça de conteúdo. É uma estratégia”.

Entre 10 mil adultos entrevistados nos Estados Unidos, a Pew Resarch Center apurou que um em cada cinco obtém notícias por meio de influenciadores de mídias sociais. E entre 500 influenciadores de notícias com mais de 100 mil seguidores predominam homens com preferências políticas mais à direita e de princípios conservadores [20] [21].

É interessante notar que apenas 23% dos influenciadores ouvidos têm experiência na indústria de notícias e alguma relação com o Jornalismo. Pode parecer irrelevante. Mas, na economia da atenção, jornalistas perseguem um tipo de equilíbrio raramente alcançável. Ao mesmo tempo em que precisam chegar à audiência, muitas vezes devem refutar o que os consumidores de informação desejam [22].

Combinar interesse público com interesses do público é uma equação ainda menos plausível no cenário atual. Não é por acaso que cientistas e jornalistas migram em massa do falecido Twitter para o BlueSky [23]. Há na “nova” plataforma, menos dependente de algoritmos e mais aberta à diversidade de opiniões, a aparência de um ambiente menos tóxico, uma vez que o ex-Twitter virou explicitamente porta-voz da extrema direita.

Realidades sob medida andam de mãos dadas com a ilusão de consensos. Seja no ex-Twitter ou no BlueSky, as razões para conformar crenças comuns estão em dia com a falta de transparência em propagandas governamentais, no desmonte dos recursos ao acesso à informação e no ataque à imprensa como forma de dividir opiniões.

As faces da desinformação não se revelam só na mentira e na falsidade espalhadas em grande escala. O desafio da Democracia é reconhecê-las e encará-las todas juntas.


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