BOLETIM SEMANAL #37
Olá pessoas.
Este é o último boletim de 2024. Fechamos com ele nossa leitura crítica sobre desinformação, focada no super ciclo eleitoral deste ano. Não tratamos exclusivamente de eleições, claro.
Seguimos, eu e Daniela Germann, a recomendação retórica do especialista em direito eleitoral Diogo Rais, dada em uma de suas palestras, de buscar indícios sobre como as eleições impactam o uso das mídias digitais e da internet [1].
Foi uma jornada de produção expressiva.
Além de 37 edições semanais de análise sobre fatos e projeções a respeito do fenômeno da desinformação em período eleitoral [2], produzimos um relato exploratório correlacionando estudos, avaliações especializadas e deduções sobre o tema [3].
Nosso propósito, aqui na e-Comtextos, foi compreender como a falta de informação baseada em fatos, subsidiada por argumentos especializados e de fontes em que se pode confiar, influencia decisões cotidianas. Em particular, neste ano, decisões eleitorais.
Aqui é Luciano Bitencourt com três pontos de atenção e algumas prospecções sobre como o super ciclo eleitoral influenciou o enfrentamento à desinformação. big techs e os poderes políticos traz riscos tão contundentes quanto a censura de Estado.
1.
Legado eleitoral no extremo entre a punição e a leniência
Novas teorias da conspiração que visam desacreditar a Democracia ganham inspiração no limiar de 2024. Chancelada pela União Europeia, a Romênia cancelou as eleições encerradas em primeiro turno no início de dezembro por suspeita de interferência russa para promover o candidato de extrema-direita. Călin Georgescu obteve maioria de votos, contrariando as pesquisas [4] [5].
Centremos a atenção no significado da decisão inédita nos países do bloco. Amparada, em síntese, na alegação de que o processo foi manipulado por meios ilícitos e campanhas de desinformação financiadas em plataformas de mídia social, essa anulação nutre fantasias sobre manobras políticas de instituições democráticas e multilaterais para evitar a extrema direita no poder [6].
O desfecho do ano em que o exercício do voto mobilizou bilhões de eleitores em dezenas de países no mundo ocidental não poderia ser mais preocupante [7]. As leis e as decisões jurídicas decorrentes do cenário eleitoral expressam a dificuldade de regular com equilíbrio a liberdade de expressão e a moderação de discursos violentos e desinformação [8]. Não é diferente no Brasil.
Por aqui, o ano legislativo termina sem qualquer prognóstico sobre a retomada do projeto de lei que trata das fake news e da moderação de conteúdo online [9]. Além disso, a Câmara dos Deputados recebe o texto do Marco Legal da Inteligência Artificial sob pressões políticas, ideológicas e econômicas para frear os avanços alinhavados no Senado [10] [11] [12] [13] [14].
No Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, justamente pela inércia do Legislativo na definição de princípios regulatórios, pesa a mão no malhete para punir as empresas de tecnologia por conteúdo ilegal de usuários em suas plataformas. A votação dos ministros do STF até aqui considera inconstitucionais os artigos do Marco Civil da Internet que desoneram as empresas de retirar de circulação, mesmo sem ordem judicial, conteúdos danosos [15] [16].
Por lucrarem com publicações que causam prejuízo a terceiros, as plataformas têm o dever de adotar uma postura ativa no intuito de evitar a violação de direitos fundamentais, conforme justificativa dos votos até agora. Mas, são muitos os fatores indicando cautela nesse tipo de decisão [17]. Talvez o mais relevante seja o risco de transferir para o setor privado a moderação jurídica de irregularidades [18]. Cabe ao Judiciário definir o que é ou não ilegal no interesse público.
As eleições municipais no Brasil trouxeram exemplos de como essa transferência pode ser tão danosa quanto o tipo de conteúdo que se quer coibir [19] [20] [21]. Práticas muito sutis de desinformação encontraram espaço para driblar a Justiça Eleitoral, cujo protagonismo de se antecipar aos impactos negativos da desinformação tem conseguido frear objetivos explícitos de minar o sistema de votação [22].
Ainda assim, há investigações em andamento para verificar fraudes envolvendo a compra de transferência de títulos em cidades com maior número de eleitores do que moradores. As irregularidades estariam na mudança de domicílio eleitoral em bloco, financiada por candidatos que venceram o pleito com vantagem pequena de votos [23] [24].
O Tribunal Superior Eleitoral não se manifestou oficialmente sobre a denúncia e não tem dado atenção ao caso. A exemplo da anulação das eleições na Romênia, as suspeitas de fraude no Brasil põem em xeque a integridade do sistema eleitoral ao alimentar teorias conspiratórias que corroboram desconfianças e trazem ainda mais confusão sobre o processo de votação eletrônica. O pleito municipal deste ano mostrou-se um balão de ensaio para 2026.
Respostas a esses dilemas devem moldar o grau de confiabilidade no futuro da Democracia.
2.
Pressões de grupos econômicos modelam decisões
Regulação é palavra-chave nesse cenário, como lembra o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), Eugenio Bucci [25]. Não afeta só os campos jurídico e legislativo. Os governos têm se fragilizado com a ingerência de grandes grupos econômicos em diferentes instâncias.
Neste ano, o ator mais proeminente das big techs no âmbito político foi Elon Musk. Promoveu “bate-bocas” digitais com autoridades de Estado, transformou o finado Twitter em mural da extrema-direita e ganhou uma vaga na administração de Donald Trump sem precisar deixar suas empresas [26] [27] [28].
Musk é a encarnação de um tipo diferente de influência exercido pelas grandes empresas de tecnologia. Não se trata mais apenas de fazer lobby para orientar regulações mais brandas e favoráveis às suas paupérrimas políticas de moderação no mercado da economia da atenção. Os donos das big techs iniciam 2025 empoderados para tomar decisões dentro das esferas de poder estatal no mais influente país do mundo [29].
As big techs têm valorizado a polarização como modelo de negócios [30]. Tensões sociais promovidas pelo extremismo político e o pânico moral gerado a partir de conteúdos falsos modelam muito do debate público sobre políticas de contenção a danos decorrentes da desinformação. A incivilidade engaja, ganha audiência e monetiza [31].
Deve-se levar em conta também o papel dúbio que essas empresas exercem no financiamento de projetos para fortalecer a integridade da informação. O “filantrocapitalismo” promovido pelas big techs oferece recursos para mídias independentes de produção jornalística ao mesmo tempo que faturam com influenciadores despreocupados com a veracidade do conteúdo que criam.
Na economia da atenção, essa “filantropia tecnológica” molda o tipo de “independência” que se deseja no ecossistema informativo e esconde a falta de compromissos essenciais, como a verificação de fatos e de perfis nas redes, por exemplo. No caso das big techs, a mão que alimenta a produção qualificada é a mesma que contamina o prato onde a informação é servida [32].
Sediadas nos Estados Unidos, as big techs ganharam poder com a eleição de Trump, ao que tudo indica. De lá, as pressões sobre legislações de outros países e sobre os limites jurisdicionais das autoridades que os representam tendem a aumentar.
Mais terreno fértil para a promoção do descrédito na Democracia e para interesses econômicos de padronizar regras que favoreçam os negócios, diluindo a soberania de estados democráticos e a legitimidade de suas decisões.
3.
Realidades sob medida inspiram a ilusão de consensos
As pressões das grandes empresas de tecnologia aproximaram interesses econômicos de discursos extremistas por meio de suas plataformas com o intuito de minar o debate público sobre quaisquer aspectos que interfiram no negócio. A ideia de que regras para a exploração e a oferta de serviços de mídia social restringem liberdades individuais de expressão e representam riscos de censura de Estado frutificou com essa simbiose.
Em aplicativos de mensagem, onde os próprios usuários moderam o conteúdo, a desinformação sustenta negacionismos, discursos ofensivos e teorias conspiratórias sobre aspectos do nosso cotidiano que afetam nossa percepção. Eventos relevantes ganham uma realidade para cada gosto e as opiniões individuais se sobrepõem aos fatos pela ilusão de consensos [33] [34] [35].
Em abril deste ano, o Terrogram foi reconhecido oficialmente pelo Reino Unido como grupo terrorista. Os adeptos no Telegram são submetidos à propaganda neonazista e à incitação de violência como forma de acelerar o colapso social. Reflexo do ódio digitalmente amplificado, as ações agressivas e letais de pessoas influenciadas pelos ideais do grupo se espalham pelo mundo [36] [37].
Pequenas comunidades que compartilham visões de mundo em nichos de aplicativos digitais tendem a achar que são maioria no que pensam e dizem. Isso vale também para todas as mídias sociais. Mesmo abertas e “moderadas” por políticas de relacionamento, essas ferramentas escondem algoritmos que recomendam conteúdos adequados à experiência de cada usuário e, por consequência, interações de interesses comuns. Em bom português, impulsionam a ilusão de consensos.
Criadores de conteúdo com certo grau de influência ouvidos pela UNESCO em diferentes países revelam um comportamento preocupante. Experiências pessoais são suficientes para expressar suas percepções, verificar a veracidade do que dizem nem sempre é necessário e poucos conhecem normas de conduta sobre a responsabilidade de compartilhar ideias, opiniões e informações [38].
Parte das pesquisas sobre desinformação considera a indignação moral um elemento chave [39]. Emoções negativas, como raiva e medo, tendem a impulsionar mentiras ou informações tiradas de contexto sem que sejam efetivamente analisadas e compreendidas. Além de estimular o compartilhamento apressado, também alcançam um público maior, tanto pelo apelo emocional da mensagem quanto pela “amplificação algorítmica” de recomendação das plataformas.
No próximo ano, os desafios para frear esse tipo de comportamento devem ser maiores. O descrédito no trabalho da imprensa, uma das instituições democráticas em crise, vai estar em evidência durante o governo de Donald Trump e reverberar nos países que apoiam suas ideias. Veículos tradicionais e respeitados nos Estados Unidos estão preferindo evitar confrontos e desistindo até de se defender judicialmente em processos acionados pelo presidente recém-eleito [40].
Preocupação extra, são crescentes o assédio judicial e a vigilância ilegal ao exercício profissional de jornalistas [41] [42] [43]. Relatórios divulgados periodicamente por entidades que monitoram a liberdade de imprensa expõem intimidações de diferentes matizes jurídicas, políticas e ideológicas [44].
Inclinações para o ódio, a violência, a polarização e o extremismo nas redes devem continuar ganhando o respaldo da falta de regulação, do estímulo à incivilidade e do assédio à imprensa.
Em síntese
As escolhas legislativas e jurídicas por punições ou leniência, a ingerência de grandes grupos econômicos nas decisões de Estado para conter os danos da desinformação e a hiper fragmentação da realidade a partir da ilusão de consensos são parte de um cenário em que, como descreve o jornalista Mat Pearce, há diferentes dimensões de controle [45].
Os ideias da internet, como uma rede aberta e sem fronteiras, parece declinar ao controle comercial da infraestrutura e da produção de conteúdo. Portanto, a soberania digital é das grandes empresas de tecnologia. Dentro de limites geográficos, os governos estão aprendendo que a soberania nacional e o controle político estão cada vez mais dependentes dos recursos que essas grandes empresas oferecem.
Para a Democracia, uma armadilha bem armada para 2025.
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Boas festas!
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