Mentalidade do Vale do Silício começa a enfrentar ações contra o monopólio digital e pela busca por autenticidade nas relações sociais online
BOLETIM QUINZENAL #02/2025

Olá, pessoas.
Na e-Comtextos, eu e Daniela Germann estamos impressionados com a sobrecarga de explicações e análises a respeito do que está por vir no âmbito das tecnologias, especialmente inteligências artificiais.
Como o nosso trabalho é avaliar tendências e cenários com base em dados, fatos e versões nas quais se pode confiar, temos percebido que os desafios estão cada vez maiores para dar conta desse compromisso.
A chegada do DeepSeek, apelidado de “IA chinesa”, transformou o cenário até então dominado pelas big techs. Não só pela surpresa quanto ao anúncio de que modelos de inteligência artificial talvez não precisem de uma infraestrutura bilionária, mas, e principalmente, porque ofuscou as demonstrações de força do monopólio digital.
Reações a esse monopólio em países periféricos como o Brasil têm servido para alimentar um discurso extremista e autoritário por meio das plataformas mantidas pelas grandes empresas. As bases desse discurso estão também na mentalidade de executivos do Vale do Silício e ganha poder global ao censurar a diversidade em nome da liberdade de expressão, como abordamos nesta edição.
A propósito, aqui é Luciano Bitencourt com o convite para continuar a leitura sobre nossas recentes apurações a respeito de como as tecnologias impactam o consumo de informação qualificada.
Um ‘click’
Vimos na posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos a presença proeminente dos executivos das big techs em lugar de destaque. Registro marcante porque explicita a aliança política e tecnológica por uma supremacia digital.
As primeiras medidas de Trump envolvendo as gigantes da tecnologia corroboram o papel estratégico dessa supremacia nos próximos quatro anos de governo.
Liberdade de expressão, em uma das ordens executivas do atual presidente, tem agora status de direito absoluto. Por ordem presidencial, o executivo está proibido de determinar ou mesmo pressionar para que as plataformas retirem conteúdo de circulação, inclusive os violentos e nocivos à democracia.
Pode parecer insignificante, mas é uma medida com efeitos diretos em países que discutem como regular ou já regulam o uso das redes sociais e tentam responsabilizar as plataformas por conteúdos que descumpram suas leis.
Um alerta
Boatos sobre a taxação do Pix no Brasil mostraram explicitamente como a desinformação tem impactos políticos e econômicos em decisões mal explicadas por autoridades públicas. A Polícia Federal ainda não encontrou indícios que justifiquem a abertura de um inquérito para apurar eventuais crimes.
O que pesou no recuo do governo em relação ao “monitoramento” do Pix pela Receita Federal foram verdades ditas fora de contexto, deturpadas para criar pânico e dúvidas sobre as intenções por trás da medida. Meias verdades que ganharam muita repercussão nas redes sociais e beneficiaram golpistas.
Uma audiência pública para discutir a regulação das plataformas foi organizada pela Advocacia-Geral da União em resposta às recentes mudanças nas diretrizes de moderação de conteúdo por parte da Meta, vista pelo governo brasileiro como uma das responsáveis pela circulação em larga escala da desinformação sobre o Pix.
Nenhum representante convidado das big techs compareceu e os especialistas foram uníssonos no alerta de que já passou da hora regular como as gigantes da tecnologia conduzem suas plataformas em território nacional.
Um terço
Os mais recentes dados do Relatório Bad Bot, levantamento anual da Imperva, sustentam que quase metade do tráfego na internet é promovido por “robôs”. Um terço, por “robôs maliciosos”.
Essa automatização é fruto de escolhas subsidiadas pelas plataformas digitais, cujo modelo de negócio privilegia a quantidade de interações para monetizar e valorizar anúncios de todo o tipo.
Somos todos usuários-mídia nesse universo. Quer dizer, quaisquer de nossas interações podem ganhar uma audiência equivalente ou superior ao que, não muito tempo atrás, era possível apenas para meios de comunicação que detinham a infraestrutura de produção e circulação de conteúdo.
O custo, entretanto, é alto: cedemos o controle de nossos dados pessoais a algoritmos, “robozinhos” de inteligência artificial que aprendem a analisar nossos gostos e preferências em troca de brinquedinhos digitais oferecidos “gratuitamente”.
Nessa lógica, o uso de mídias sociais em quaisquer plataformas disponíveis nunca foi, não é, nem será “gratuito”. O problema é quem controla os dados e para que fins.
Um mau negócio
Diante da intensa conexão digital a que estamos submetidos, todas mediadas por plataformas, valores individuais influenciam o que percebemos como verdade. Isso obscurece os limites entre opiniões e fatos.
É um tipo de influência que golpeia lentamente a confiança em indícios e evidências que nos mostram o quanto nossas crenças podem estar erradas. Sem contar o bombardeio de explicações contraditórias que nos confundem sobre fenômenos não tão simples de entender.
Quando Mark Zuckerberg anunciou, logo no início do ano, que a moderação de conteúdo nas plataformas da Meta seria feita pelos próprios usuários e não haveria mais verificação de veracidade em postagens que ferem direitos, ele apenas confirmou uma tendência.
Ao longo do tempo, as big techs têm empreendido esforços para bloquear o acesso aos dados que coletam com o intuito de evitar análises críticas à forma como gerenciam o consumo de conteúdo e lucram com a desinformação.
As empresas de tecnologia hegemônicas no mercado perceberam que dar a analistas especializados transparência sobre critérios de coleta, tratamento e uso das informações cedidas pelos próprios usuários é um mau negócio.
Uma sacudida
Relatório do Fórum Econômico Mundial divulgado no dia 15 deste mês grifa a desinformação como o principal desafio no curto prazo. Automação, algoritmos e inteligências artificiais estão amplificando mentiras, fraudes e ofensas em uma escala preocupante para a soberania dos países, os processos eleitorais e o debate público.
Na pauta também entraram as consequências do uso de inteligências artificiais no mundo do trabalho e empresarial. Por um lado, o potencial dessas ferramentas sugere uma desoneração de encargos e fatores humanos que as empresas julgam necessários para impulsionar a inovação e o desenvolvimento.
As frustrações, por outro lado, dizem respeito à pouca efetividade no cumprimento das promessas feitas em nome das inteligências artificiais. Economicamente falando, os resultados ainda não compensam os investimentos corporativos de produzir mais com menos. Nesse caso, menos recursos humanos.
Dá para entender o alvoroço com a chegada de novos atores que prometem a mesma eficiência já alcançada com ferramentas de IA populares a custos bem mais baixos. Críticas ao desempenho e acusações de fraude ao recém-lançado modelo R1 do DeepSeek, oriundo da China, não faltam.
Acontece que o anúncio da nova ferramenta de inteligência artificial não sacudiu só o mercado de ações e os modelos de negócio das gigantes da tecnologia. Outras empresas chinesas também foram estimuladas a apresentar produtos que prometem mais eficiência do que seus concorrentes.
O pensamento
Bryan Gardiner, escritor e colaborador do MIT Technology Review, fez no final do ano passado uma análise interessante sobre a influência das big techs em processos democráticos, com base nos livros de Rob Lalka (The Venture Alchemists: How Big Tech Turned Profits Into Power) e Marietje Schaake (The Tech Coup: How to Save Democracy from Silicon Valley).
Nos Estados Unidos, o pensamento sobre sucesso e inovação foi “contaminado” pela mentalidade do Vale do Silício, na qual “riqueza é poder” e “liberdade e democracia podem não ser compatíveis” são algumas das retóricas alinhadas a estratégias de negócio.
Não há precedentes para os riscos aos quais a Democracia está sujeita, dizem os analistas, por conta de monopólios digitais que limitam a concorrência, controlam dados de usuários, manipulam a circulação de informações, restringem a diversidade de ideias, amplificam a desinformação e influenciam intenções de voto.
Pode-se dizer, no entanto, que alguns paradigmas estão sendo revistos. Código aberto, redes menores e descentralizadas, compartilhamento de dados e gestão de informações sob o controle de usuários não são conceitos novos, mas ressurgem enquanto as big techs alinham seu poder econômico a ideologias políticas hiper conservadoras.
Um futuro
Um grupo de escritores, especialistas em tecnologia e pesquisadores pretende criar até o final deste ano uma fundação independente para arrecadar 30 milhões de dólares no próximo triênio.
O dinheiro deve financiar um ecossistema de redes baseado em protocolo descentralizado, nos moldes do usado pelo Bluesky, o que garantiria aos usuários mais segurança e controle de seus dados.
É uma forma de valorizar o que Marcelo Bachara, executivo de Comunicação, chama de “usuário pessoa”, um conceito que se contrapõe à ideia de usuário-mídia porque pressupõe a existência de alternativas ao ambiente automatizado, inautêntico e influenciado por técnicas que respondem exclusivamente à economia da atenção.
“O futuro da internet está no empoderamento do usuário humano, como senhor de seu próprio destino digital”.
Para o consumo de informação de qualidade, a prerrogativa de escolha baseada na relação e na interação entre usuários sem a interferência de “robôs” programados para recomendar conteúdo e influenciar preferências pode ser um caminho.
Em um cenário assim, a desinformação sobre o Pix e o registro dos magnatas da tecnologia na posse presidencial de Trump seriam mais um item no variado cardápio de opções em que a autenticidade e a diversidade teriam a preferência. Em tese.
Para ir mais fundo
- [1] Como o Vale do Silício está perturbando a democracia (MIT Thecnology Review)
- [2] A Internet Morta e a IA Viva (LinkedIn)
- [3] Relatório Bad Bot 2024 (Imperva)
- [4] A mão invisível das plataformas e a censura na internet (The Conversation Brasil)
- [5] Entre notícias falsas e fatos: a responsabilidade da mídia internacional (Swissinfo)
- [6] The global struggle over how to regulate AI (Rest of World)
- [7] Relatório do Fórum Econômico Mundial aponta que desinformação é principal risco global a curto prazo (Estadão)
- [8] Como aliança entre Trump e big techs aumenta pressão sobre governo Lula e STF (BBC News Brasil)
- [9] DeepSeek muda regras do jogo (The Shift)
- [10] A hiperconectividade digital e a soberania nacional (Jota)
- [11] A liberdade segundo Zuckerberg (Piauí)
- [12] Seating arrangements at the Trump inauguration give a preview of what’s to come (Poynter)
- [13] Grupo busca US$30 mi para novo ecossistema de redes sociais (Núcleo Jornalismo)
- [14] Audience editors offer advice for “dispiriting” times in social and search (NiemanLab)
- [15] OpenAI says Chinese rivals using its work for their AI apps (BBC)
- [16] OpenAI Furious DeepSeek Might Have Stolen All the Data OpenAI Stole From Us (404media)
- [17] Alibaba lança IA que diz superar DeepSeek e declara guerra no setor; conheça (Infomoney)
- [18] Sem a presença das plataformas, audiência da AGU tem apelo de especialistas à regulação das redes (Jota)
- [19] Consulta da AGU sobre moderação de conteúdo reúne 87 contribuições, mas nenhuma de big techs (Mobile Time)
- [20] PF faz apuração preliminar para abrir inquérito sobre fake news do Pix (Metrópoles)
- [21] Uma mentira repetida milhões de vezes (Lupa)
- [22] Meta AI will use its ‘memory’ to provide better recommendations (The Verge)
- [23] Meta faz prenúncio de que soberania digital é a pauta das ‘big techs’ (Desinformação em Pauta)
- [24] Dieta informacional #06 (e-Comtextos)
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