Confiança na mídia não é suficiente para desfazer crenças infundadas

Importam padrões de produção, não a mídia (Imagem gerada com IA – Freepik)

Olá, pessoas.

Não é a primeira vez que eu e Daniela Germann, aqui na e-Comtextos, lemos ou ouvimos que a crença em desinformação não tem relação direta com a confiança na mídia que consumimos.

Falamos em um dos nossos boletins do ano passado sobre a possibilidade de Donald Trump ter se beneficiado eleitoralmente do esforço da imprensa em desmentir suas declarações infundadas.

Trump teve mais apoio do que o esperado em segmentos de eleitores que o rejeitavam. Argumentávamos, em síntese, que os politicamente desinteressados não foram afetados pela resistência da imprensa ao candidato, nem pela insistência de desmentir a propaganda eleitoral enganosa na qual ele baseou sua candidatura.

Precisamos, no entanto, acrescentar outras variáveis nessa equação. A confiança geral nas notícias tem, nos Estados Unidos, um índice abaixo da média mundial e a indústria da mídia, que inclui as plataformas mantidas pelas big techs, respalda esse descrédito dando palco para o extremismo político.

Recente estudo de jornalistas e acadêmicos chilenos mostra que fortalecer um ecossistema confiável de notícias, com padrões jornalísticos de produção, pode ser mais eficiente no combate à desinformação do que recuperar a confiança do público nos meios de comunicação tradicionais.

No Chile, como em praticamente toda a América Latina, aliás, a concentração de propriedade sobre veículos de comunicação reduz também a quantidade de fontes e vozes que ajudariam a produzir visões mais críticas e representativas dos problemas. É um dilema antigo, amplificado agora pela ideia de que cada um de nós é a própria mídia.

Aqui é Luciano Bitencourt, no calor escaldante e acima da média para o verão no Sul do Brasil, pensando alto sobre o fato de que o ecossistema de notícias vem ganhando contornos mais visíveis fora da indústria da comunicação como a conhecemos.

Muito desafiador para quem lida com desinformação é entender suas nuances. Um vídeo, a princípio postado pela primeira vez em 7 de fevereiro no finado Twitter por uma conta pró-Israel chamada Nazi Hunters (@HuntersOfNazis), está dando o que falar.

Donald Trump e Elon Musk aparecem como figuras proeminentes que transformam a destruída Faixa de Gaza em um ponto turístico tão exótico quanto bizarro e repulsivo.

O vídeo parece ter sido produzido originalmente como uma sátira às declarações de Trump, repercutidas pela imprensa um dia antes da postagem, dando conta de que os Estados Unidos iriam “cuidar” da Faixa de Gaza e transformá-la em um resort internacional.

A conta Nazi Hunters, notadamente anti-Palestina, dizia ironicamente que o vídeo era a primeira “promoção turística” do “Gaz-A-Lago”, uma alusão ao resort de luxo na Flórida usado por Trump como residência.

Não vamos perder tempo descrevendo a pérola de mau gosto produzida em primeiro plano como piada. Interessa aqui o uso político e viral do vídeo, promovido pelo próprio Trump em suas redes sociais duas semanas depois da postagem original.

A imprensa, de modo geral, amplificou a “sátira” sem contextualizá-la, dando ao presidente dos EUA nova oportunidade para explorar desdenhosamente, como é de praxe, as críticas a suas ações descabidas e declarações infundadas.

Sim, Trump foi severa e corretamente criticado, inclusive por aliados e partidários. Mas, em camadas mais profundas da organização social, a imagem de Trump pode ter se fortalecido diante do desinteresse crescente por fatos e evidências.

O presidente dos Estados Unidos faz de si mesmo a sátira que o impulsiona. E a imprensa tem comprado a propaganda.

O efeito “tiro pela culatra”, “Backfire Effect” na expressão original cunhada por Brendan Nyhan e Jason Reifler em 2010, ajuda a explicar porque os fatos são insuficientes para fazer alguém mudar de opinião.

Na tentativa de corrigir falsas crenças políticas, os pesquisadores descobriram que as pessoas eram frequentemente provocadas a ir mais fundo no que já acreditavam, ao invés de só rejeitar as correções.

Para reforçar crenças, o cérebro usa um sistema que filtra o que ignorar, colocando a razão em segundo plano. É por isso, dizem Nyhan e Reifler, que adotar exclusivamente dados e estatísticas para refutar opiniões infundadas pode, inclusive, dar mais munição às crenças por trás delas.

Sem componentes emocionais que ajudem a estabelecer um diálogo, dificilmente se consegue convencer alguém a não acreditar em algo sem evidências. Dizem os estudos, essa é uma forma de defesa usada pelo cérebro para preservar nossa identidade.

Os fatos só são úteis, nesse caso, quando já há predisposição para o debate, fazem parte de histórias que as pessoas reconhecem ou as convide para explorar ideias diferentes, sem que soem como ameaça.

Dependendo de como nos é apresentado, o contraditório pode reforçar certezas no que se está tentando desmentir. Um desafio a mais para a produção de notícias, que usa fatos para refutar informações falsas e alegações mentirosas.

Esse negócio de lidar com a desinformação é complicado. As ferramentas e estratégias de manipulação estão muito mais complexas. E há todo um aparato tecnológico com recursos acessíveis a quaisquer usuários que tenham essa intenção.

Claire Wardle e Hossein Derakshan desenvolveram um conceito que procura explorar várias facetas desse fenômeno. Em um relatório produzido para o Conselho da Europa em 2017, os autores cunharam o termo “desordem informacional” para explicar a legisladores e formuladores de políticas as diferentes nuances do caos informativo em que estamos.

Adotado por organizações multilaterais, como a ONU, o conceito diferencia três aspectos que ajudam a identificar características e efeitos diversificados na interpretação de como enfrentar o problema.

Existe a informação errada (mis-information), quando alguém compartilha alegações falsas ou distorcidas simplesmente porque reforçam suas crenças. Não há, nesse caso, intenção de dolo. A própria imprensa está sujeita a esse tipo de engano, quando jornalistas apuram mal suas histórias.

A desinformação (dis-information) propriamente dita refere-se ao compartilhamento intencional de conteúdo fraudulento. Quem dissemina esse tipo de conteúdo sabe da fraude e conta com ela para prejudicar pessoas ou instituições. É um tipo de estratégia apoiada por infraestrutura e financiamento para fazer o conteúdo chegar ao máximo de pessoas predispostas a acreditar nele.

Por fim, existe a má informação (mal-information), quando dados e fatos são distorcidos, tirados de contexto, usados para despertar emoções negativas, como medo e raiva, ou para expor pessoas e instituições ao julgamento público. Nesse caso, as informações “verdadeiras” são usadas com o propósito de influenciar ações contra algo ou alguém.

Em cada uma dessas três dimensões existem ainda outras variáveis que caracterizam os tipos e os efeitos dos riscos relativos à “desordem informacional”.

Por esse conceito, por exemplo, dá para entender que “o tio e a tia do zap” não podem ser comparados a grupos organizados e financiados para criar e disseminar fraudes e conteúdos violentos ou ilegais. As intenções e as estratégias são muito distintas.

Sem compreender as nuances da “desordem informacional”, tendemos a estigmatizar pessoas erroneamente informadas como criminosas. O circuito da desinformação, inclusive, explora pessoas mal informadas para amplificar a circulação de conteúdos fraudulentos.

E a própria imprensa pode servir de propulsão para crenças infundadas.

Pesquisadores de quatro universidades do Chile mostraram em um estudo publicado no final do ano passado que o consumo de notícias pode influenciar decisões eleitorais quando os próprios meios de comunicação contribuem para a “desordem da informação”.

As deduções são interessantes. A primeira e mais impactante revela que a confiança em veículos tradicionais de comunicação induziu eleitores a acreditarem em falsos argumentos sobre o texto constitucional que iria a plebiscito.

Afirmações duvidosas, não verificadas e rumores foram divulgados como notícia. A imprensa tradicional comprou sem resistência as estratégias de desinformação em campanhas promovidas por opositores à nova Constituição, reforçando a rejeição à proposta.

Em outra dedução relevante, os pesquisadores avaliam que estimular posicionamentos críticos aos veículos pode ser mais eficiente para o combate à desinformação do que se supõe. Em outras palavras, não basta apenas confiar nos produtores de notícia porque são a resposta contra opiniões sem fundamento.

É preciso levar em conta que os veículos tradicionais de comunicação estão concentrados sob propriedade de poucos donos no Chile. Existe, portanto, uma concentração também de abordagens sobre temas de interesse público, reduzindo o espectro de representação política e cultural das notícias.

Em bom português, a concentração de propriedade na indústria da mídia, típica em países latino americanos, tende a reduzir a produção de notícias a visões políticas e culturais de estratos sociais representados por seus donos.

Por essa razão, reforçar um ecossistema de notícias diversificado e baseado em padrões jornalísticos de produção, que adotem diferentes abordagens, verifiquem afirmações e combatam rumores, pode ser mais eficiente contra a desinformação do que elevar a confiança nos veículos especificamente.

Um ecossistema de notícias, como pensado aqui, não se resume à clássica indústria da mídia, onde a produção jornalística, reduzida a mero conteúdo, convive e compete com a publicidade e o entretenimento.

Como alertam os pesquisadores chilenos, a confiança nos meios pode ter mais a ver com o alinhamento dos consumidores de notícia a crenças profundas do que com a qualidade e a integridade da informação propriamente ditas.

Ao cercear o acesso da Associated Press à cobertura da Casa Branca, há poucos dias, e assumir pessoalmente o credenciamento de jornalistas em eventos restritos, Donald Trump parece entender o atual cenário.

A Associated Press se nega a chamar o “Golfo do México” de “Golfo da América”, como determina o governo, e é acusada de usar um manual de estilos com termos que, segundo Trump, são da “esquerda radical”. A AP comprou judicialmente a briga por considerar que o governo está ferindo a liberdade de imprensa.

Como resposta imediata, o presidente dos Estados Unidos destituiu a associação de correspondentes cujos representantes eleitos periodicamente pelos veículos de imprensa eram responsáveis por distribuir credenciais para eventos específicos e locais de trabalho disponibilizados pela Casa Branca. O próprio Trump vai fazer a seleção de veículos convidados a partir de agora.

Desde que assumiu a presidência, ele tem criado empecilhos para parte mais crítica da imprensa e dado privilégios a influenciadores e criadores de conteúdo aliados, sem vínculo com veículos tradicionais de jornalismo ou responsabilidade pela apuração dos fatos.

Assessores do governo justificam que essa medida é uma forma de atender aos “hábitos de mídia do povo” na atualidade. Mas, jornalistas experientes em coberturas do gênero intuem que Trump pretende cortar definitivamente o acesso de organizações de notícia das quais não gosta ou não atendam à sua agenda.

Os “hábitos de mídia do povo” incluem cada vez menos o consumo de notícias em sua dieta de informação. Talvez porque, como sugere o estudo no Chile, se esteja dando ênfase demais à tradição dos veículos jornalísticos e não a um ecossistema de produção de notícias dependente de histórias bem apuradas, nas quais as pessoas se sintam representadas.

As notícias precisam circular como se pertencessem a quem as consome e compartilha.


  • [1] Veículos tradicionais: um escudo eficaz contra a desinformação? (LatAm Journalism Review)
  • [2] “Your house won’t be yours anymore!” Effects of Misinformation, News Use, and Media Trust on Chile’s Constitutional Referendum (Sage Journals)
  • [3] Porque fatos não mudam opiniões (Projeto Brief)
  • [4] Why the backfire effect does not explain the durability of political misperceptions (PNAS)
  • [5] Por que fatos não mudam opiniões? (Newsletter Projeto Brief)
  • [6] When Corrections Fail: The Persistence of Political Misperceptions (JSTOR)
  • [7] Entenda o que é ‘desordem informacional’, termo usado por Lewandowski e pela USAID (Estadão)
  • [8] Desordem informacional: para um quadro interdisciplinar de investigação e elaboração de políticas públicas (Conselho da Europa)
  • [9] ‘Trump Gaza’ video shared by president originated from pro-Israel accounts that have embraced AI (BBC News)
  • [10] Looks like the Gaz-A-Lago resort already dropped its first official tourism promo (Nazi Hunter)
  • [11] Trump’s White House continues chipping away at press freedoms (Poynter)
  • [12] Online Election Manipulation Is a Challenge for Democracy. It’s About to Get a Whole Lot Worse. (Tech Policy)
  • [13] Como volta de Trump pode levar democracia dos EUA ao colapso (Folha de São Paulo)
  • [14] Onde tudo parece mentira, ceticismo pode minar os fatos com falsas equivalências (Desinformação em Pauta)

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