LEITURA CRÍTICA

BOLETINS SEMANAIS

A realidade feita sob medida e a ilusão de consensos são fruto de uma crise na qual a polarização e a desorientação social, a distorção dos fatos como "nova normalidade" e a indústria da mentira alimentada por influenciadores em busca de dinheiro e pelas elites em busca de poder constituem o circuito de desinformação, como destaca na capa a edição dominical do jornal espanhol El País. É preciso considerar, contudo, que governos estão usando a publicidade oficial para controlar veículos de informação, estão reduzindo o direito legal de acesso à informação e atacando a imprensa para dividir opiniões e desacreditar informações que se contrapõem à propaganda. Esses indicadores também se somam às mentiras e falsidades espalhadas em grande escala com efeitos danosos para as democracias.

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Os esforços para responsabilizar as plataformas de mídia digital pela circulação de conteúdo nocivo e fraudulento não são suficientes para conter a desinformação. Primeiro porque isso abre brechas para a censura se não houver um regramento claro sobre o que se quer que as empresas de tecnologia cumpram. Além disso, desconsidera uma infraestrutura lucrativa, onde algoritmos amplificam o alcance da desinformação e as empresas de tecnologia monetizam todo o tipo de narrativa que gere mais audiência. A qualidade da informação importa pouco nesse modelo de negócios, privilegiado pelo anonimato dos produtores de desinformação e pela falta de compromisso com os conteúdos de interesse social. Uma proposta interessante é limitar o alcance de conteúdos nocivos, o que exigiria enquadrar as plataformas em critérios que veículos de comunicação tradicionais já devem cumprir.

O termo 'fake news' foi sequestrado pela retórica política em uma semana marcada por denúncias sobre a existência de um "gabinete" vinculado ao Palácio do Planalto para promover ataques a opositores e espalhar desinformação, e pela pressão de parlamentares bolsonaristas quanto à investigação em andamento na Polícia Federal sobre conteúdos falsos a respeito da ajuda e do resgate às vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Traduzido como "notícia falsa", o termo induz à percepção de que as mentiras são produzidas pela imprensa e sugere que criminalizar argumentos falsos é uma forma de cercear a liberdade de expressão. Mas as 'fake news' estão associadas à fraude e ao dolo. Quem as cria, produz e dissemina tem a intenção de obter vantagens e a consciência de que está cometendo um ilícito. A Democracia perde com a simplificação.

Desafiada a estabelecer os critérios de regulação na produção de conteúdo e anúncios políticos na campanha para as eleições municipais no Brasil, a Justiça Eleitoral se posiciona no limite entre a censura e a moderação necessária da liberdade de expressão. Não é um lugar confortável, especialmente pela ausência de uma legislação específica. Mas, o sistema jurídico brasileiro já tem instrumentos sólidos para o combate à desinformação, baseados no Código Penal. A questão é que, mesmo em regiões onde a regulação das mídias digitais é considerada avançada, como na Europa, o processo eleitoral não escapou das campanhas ilegais e de desinformação. Os riscos associados a esse problema extrapolam a responsabilização das empresas de tecnologia e a criminalização das chamadas 'fake news'. Existe uma crise de legitimidade das nações, com cada vez menos poder para enfrentar o desafio sozinhas.

No Congresso Nacional, a criminalização das 'fake news' foi vetada. No STF, o assédio judicial a jornalistas foi reconhecido. Mas a inércia no combate à desinformação se renova no jogo político passional e polarizado. O Legislativo se divide entre a justificativa rasa dos opositores ao governo, de que a criminalização das 'fake news' é uma forma de censura, e a proposta governista de moderar a liberdade de expressão pela punição, sem muita clareza sobre como pesar as diferentes intenções e responsabilidades na propagação de mentiras e falsidades. Enquanto isso, o Judiciário assume o protagonismo de proteger a integridade das eleições com medidas nem sempre amparadas por princípios democráticos, ainda que necessárias para se evitar danos à Democracia. Pela inércia política e pelas reações judiciais, estilhaços da desinformação vão minando o campo por onde os fatos perdem força.